André Dória: “As empresas não funcionam bem se os conflitos não se resolvem”

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Dar e receber é essencial em qualquer negociação win-win, e a VN Tech do André Dória é especialista nesta área. Mas não é só no campo profissional que a vida do empreendedor tem situações win-win. Com a dedicação que dá aos passeios de bicicleta de longa distância, recebe a paz de espírito e a simplicidade da vida. Com a dedicação que dá à empresa, recebe a valorização da mesma e realização profissional. E com a dedicação que dá à mulher e aos cinco filhos, recebe a pedra basilar da sua vida. E tu, caro leitor, se deres uma vista de olhos nesta edição do Out Of Office, vais receber uma história que mostra como a procura comum do bem pode mover o mundo.

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André, o que é a VN Tech?

A VN Tech é o resultado de uma vontade de três professores de negociação de levar a teoria e a prática da disciplina para o mundo dos negócios, de uma forma mais ágil e escalável. Tínhamos uma vontade de democratizar aquilo que nós fazemos, que é advisory de negociação, e utilizar as tecnologias para conseguir chegar mais facilmente às empresas e, em particular, focar-nos em negociações mais benéficas, automatizadas e estruturadas.

E como é que tudo começou?

O meu interesse despertou-se para esta área da negociação durante o MBA, já lá vão alguns anos, quando optei por uma cadeira opcional de negociação, e fiquei simplesmente fascinado por combinar o lado mais analítico da tomada de decisões com as competências interpessoais, as chamadas soft skills. A partir daí, pensei: “É isto que quero fazer da minha vida”. Comecei a trabalhar nesta área, desenvolvendo as minhas próprias ferramentas em Excel. À medida que ganhava experiência a negociar contratos de energias renováveis com fundos de investimento e outras atividades, comecei a preparar um curso sobre negociação, que lancei como uma espécie de startup, inicialmente para amigos e depois para amigos de amigos. Mais à frente, fui convidado para lecionar temas relacionados com negociação e análise de negócios numa escola de negócios, portanto, foi o início de um crescimento gradual.

Como é que surgiu a ideia de criar a VN Tech?

A formalização aconteceu quando me juntei à Nokia Mobile Networks, para a equipa de negociações estratégicas globais, em Munique. Durante o meu tempo na Nokia, entrei em contacto com um professor de negociação do INSEAD, uma prestigiada escola de negócios com polos em França, Singapura, entre outros, e foi-me apresentado o professor Horácio Falcão que já tinha desenvolvido uma poderosa metodologia chamada Value Negotiation. Na altura, discutimos a possibilidade de criar um centro de excelência em negociação na Nokia. Embora o projeto não tenha avançado por várias razões, estabelecemos uma relação que perdurou.

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E dessa relação nasceu a VN Tech?

Passados alguns anos, por motivos pessoais – a doença da minha mãe -, tive de regressar a Portugal. Abandonei o que fazia na Nokia e comecei a lecionar negociação, o passo mais natural para continuar em Portugal. Juntei-me à Porto Business School e durante alguns anos ministrei MBAs e programas executivos. Paralelamente, cresceu em mim a ideia de desenvolver uma ferramenta tecnológica para otimizar negociações. Comecei com uma simples folha de Excel, mas gradualmente evoluiu para uma versão mais sofisticada, com macros em VBA para automatizar processos e análises. Apercebi-me de que poderia transformar isto num produto, possivelmente uma pequena startup, e adoraria apresentá-lo a alguém para ver se ganhava tração. Mostrei a algumas pessoas e uma das quais foi este Horácio Falcão. Reuni com ele, e ele disse-me “André, olha, parece-me a mim que nós temos duas abordagens possíveis. Ou competimos porque eu quero também fazer uma coisa deste género, ou então colaboramos” e a partir daí fez-se história. Juntamo-nos os dois, criámos a VN Tech para usarmos o nome Value Negotiation ligado à metodologia que ele próprio fundou, e até já tinha escrito um livro que serve como uma das referências mais relevantes para aquilo que queremos fazer. Houve uma série de conversas antes, afinamos estratégias, constituímos empresa, trouxemos mais uma pessoa da confiança do Horácio, que é o Rodrigo, um dos nossos sócios da empresa, ele próprio também professor de negociação no INSEAD, e lançamos o projeto. Foi assim que começou esta Value Negotiation Technologies, nome comprido para VN Tech.

E como é que surgiu a vossa ligação à UPTEC?

Surgiu de uma forma muito, muito pragmática, eu moro aqui ao lado (risos). Obviamente que já tinha ouvido falar da UPTEC, muito bem por sinal, e conhecia algumas das empresas que estavam incubadas aqui. Tinha um escritório noutro sítio, mas depois mudei-me para esta zona do Porto e pensei que tinha de fazer uma ligação aqui, não tanto pelo espaço físico, mas também pelos serviços adicionais que a UPTEC oferece, como contatos com potenciais clientes, ligações com investidores, sessões de mentoria, eventos que organizam para conhecer outros fundadores, etc. Diria que está a ser uma experiência superpositiva.

“Fazemos um exercício conjunto de negociação, de maximização de valor, com o poder da máquina”

O que é que são negociações digitais?

São negociações Business to Business, no nosso caso particular, que não diferem, ou não deveriam diferir, das negociações entre humanos, mas que têm a vantagem de, ao ter um processo mais digital, podermos automatizar em grande escala, e de serem muito mais estruturadas. Pode parecer estranho, mas é muito mais fácil programar um autómato para ser capaz de fazer propostas de uma forma mais lógica, utilizando o poder da computação, que maximize os meus interesses e, potencialmente, os da outra parte, do que pôr dois humanos a conversar, a beber uma cerveja, almoçar fora etc, a fazer muita relação, e depois com isso, ganham um bocado confiança, falam mais facilmente sobre os temas, mas depois, na hora de conseguir otimizar o valor do contrato, precisam da ajuda da máquina por ser mais rigorosa, ter mais poder de cálculo. No fundo, fazemos um exercício conjunto de negociação, de maximização de valor, com o poder da máquina. Daí a vantagem de fazer negociações digitais, por poderem ser muito mais ubíquas, por poderem ser feitas em grande escala, em qualquer empresa que tenha um departamento mínimo de compras. Nós estamos a preparar isto para ser um sistema ligado aos departamentos de compras, que, por sua vez, depois contactam os seus fornecedores e afinam as propostas por aqui.

E como funciona o vosso modelo de negócio?

Isso é uma pergunta que ainda não tem fim. Estamos a testar vários modelos, à procura de um que funcione bem para os nossos clientes, e do qual também nos orgulhemos enquanto negócio que estamos a criar. Sendo isto uma plataforma de SaaS – software as a service- pedimos uma fee para fazer o setup da plataforma na empresa, e depois, a partir do momento em que sabemos quais é que são as negociações típicas que eles vão fazer, que vão executar, criamos os casos práticos, os chamados templates de negociação para cada uma dessas categorias de compras e, com isso, preparamos as integrações com os seus sistemas, preparamos os objetivos, as preferências da organização quando faz as compras.

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Com que empresas têm trabalhado?

Eu acho que nós poderíamos entrar em quase todas, porque esta é uma ferramenta geral para resolver uma parte substancial das várias categorias de compras. Porque a negociação é mais um processo, não é propriamente o conteúdo que nós colocamos lá. Portanto, a estrutura, à partida, é suficientemente flexível para podermos analisar várias categorias. Mas as regras do empreendedorismo ditam que se deve começar com um caso, aprendê-lo bem e depois escalar passo a passo. Foi assim que, há algum tempo, antes de tomarmos a decisão de passar da nossa máquina de negociação para procurement, fizemos um piloto em diferentes áreas. Primeiro, fizemos um piloto para ajudar a Danone, posso dizer-te que foi há alguns anos e que não teve continuidade. Foi feito para que eles pudessem estruturar as negociações com os distribuidores aqui em Portugal, vender iogurtes de uma forma mais estruturada, negociar cláusulas como espaço nas prateleiras, se temos ou não direito a um topo de corredor, quanto é que pagamos para ter mais promoção no supermercado, etc. Aprendemos muito, mas não houve continuidade. E depois tivemos a pandemia de COVID, e com isso apercebemo-nos de que havia grandes problemas com as companhias aéreas, voos cancelados, indemnizações por pagar… Por isso, pivotámos para aí, lançámo-nos em grande escala, e percebemos que as coisas estavam a correr bastante bem no exercício que fizemos na Lufthansa. E depois veio esta terceira parte, que era a parte das negociações de procurement – ajudando no processo de fornecimento, aquisição, pagamento de bens e serviços, porque era aí que achávamos que se encaixava que nem uma luva.

Este projeto na Lufthansa, de certa forma, deu-vos aquela validação para aquilo que iria ser o vosso futuro enquanto empresa?

Eu diria que o grande sumo que nós tiramos desse piloto foi exatamente esse. Foi nós desenharmos um conceito de negociação, que potencialmente se aplicaria a massas, e arranjar uma forma de conseguir negociar win-win. Por um lado, o interesse da companhia aérea era reter tanto dinheiro quanto possível, e do outro lado, melhorar a relação com os passageiros que estavam frustrados, que perderam o voo, e dar-lhes qualquer coisa em troca que fosse de baixo custo para a Lufthansa, mas de alto valor para os passageiros. Os resultados foram muito interessantes. Conseguimos fazer grandes poupanças a nível da Lufthansa, conseguimos que os passageiros não pedissem dinheiro, pedissem outras coisas como o upgrade para a classe executiva, acessos mais baratos ou gratuitos até para Business Lounges, acesso a hotéis mais baratos com condições idênticas às que têm as suas tripulações. No questionário que fizemos a seguir, em seis dimensões diferentes de relacionamento, em média, 8.5 passageiros em cada 10 preferiam fazer pelo sistema do que pelo departamento de call center da Lufthansa. Para não falar que fica muitíssimo mais rápido.

Uma solução que pode ser muito abrangente…

Sim, sim. Entretanto, passamos das companhias aéreas para os têxteis, talvez por estarmos aqui no Norte do país, que tem um tecido industrial denso. Acabei por fazer algumas demonstrações, houve um grupo alemão que quis pegar nisto, e foi o nosso primeiro caso de uso, e temos suscitado algum interesse noutras empresas do setor, mas não temos discussões limitadas só aqui. Temos também explorado outras potenciais parcerias em grupos metalomecânicos, em retailers online, vários tipos de setores.

Antes de constituírem a VN Tech, já tinham experiência prática na área?

Sim, temos ajudado alguns clientes internacionais em setores muito diferentes. Ultimamente tenho coberto mais o setor do petróleo, da energia, empresas de telecomunicações, farmacêuticas, que é um dos setores com maior peso para a Value Negotiation, e os meus sócios têm trabalhado desde bancas de investimento de renome, aqueles gigantes tecnológicos americanos, que os nomes nós conhecemos e usamos todos os dias (risos). Não só a dar formação nessas empresas, mas também resolver alguns problemas específicos, como uma empresa grande de streaming mundial que está a negociar, por exemplo, onde é que fica o botão que dá o acesso direto ao meu serviço de streaming, com um líder de televisão mundial ou, por exemplo, uma companhia aérea que tenta resolver os seus problemas, bastante grandes, que já estavam a nível de idas a tribunal e notícias a dizer mal uns dos outros, etc. No fundo, a equipa ajuda estes desafios grandes, que tem grandes impactos para as empresas porque as empresas não funcionam bem se os conflitos não se resolvem.

“O ‘win-win’ é o caminho que escolhemos fazer”

E achas que existe possibilidade de win win em todas as negociações?

Essa é uma pergunta excelente. Sabes que “win-win” não é propriamente o resultado. O “win-win” é o caminho que escolhemos fazer. Acredito que é possível optar por este caminho, temos é de ter consciência de que, quando o fazemos, estamos a dar vários passos de negociação. Um e-mail é um passo de negociação, uma chamada telefónica é um passo de negociação. Não responder a uma mensagem é um passo de negociação, mas esse caminho é feito por muitos passos pequenos que podem ter duas hipóteses: ou ganha ganha – “ win-win” ou ganha perde – “win-lose”. Cumpre-nos, a nós, escolher fazer os caminhos de forma certa, e sermos coerentes para conseguir arranjar um caminho “win-win” para qualquer negociação.

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Dentro da vossa área existe uma empresa que é a Pactum, a líder de mercado. De que forma é que o percurso deles também influencia aquilo que são os vossos passos e o vosso futuro?

Eu acho que o percurso deles deixa-nos muito felizes porque demonstraram, com muito sucesso, de que é uma lacuna que existe no mercado e há valor no preenchimento dessa lacuna. Estão, de facto, uns anos à nossa frente. Já conseguiram levantar um investimento muitíssimo superior ao nosso, o último foi de oito milhões de euros. Começaram na Estónia, e já passaram para São Francisco, já tem grandes clientes, grandes nomes, portanto, estão claramente à nossa frente em termos gerais. Foi muito bom perceber que este caminho que eles fizeram é um caminho que funciona, mas nós temos uma abordagem diferente. Eles trabalham, sobretudo, com empresas do Grupo Fortune 500, empresas que faturam um elevado número de biliões, mas como a equipa de negociação de compras é limitada, – grande, mas limitada, – têm um problema específico: não conseguem ir a todas as outras empresas. Portanto, aqueles fornecedores mais pequenos, que são imensos, e que fazem parte do tail-spend, em que há um volume de transações muito elevado a baixo custo, também precisam deste tipo de negociação. Somando todas essas empresas é um volume muito considerável. E era preciso gastar imenso tempo de negociação, coisa que essa equipa não tem.

E é aqui que a VN Tech se diferencia da Pactum?

Nós temos um processo diferente do deles. Nós achamos que o nosso é mais win-win que o deles. Fazemos uma abordagem um bocadinho mais openbook, e tentamos não usar a ideia da coerção ou da ameaça. Não estou a dizer que eles o façam, mas nós, claramente, não queremos usar qualquer coisa que soe a ameaça para conseguir aquilo que nós queremos. E o nosso produto é flexível o suficiente para fazer negociações mais estratégicas. Não só as mais pequenas, mas também com fornecedores maiores, com cláusulas um bocado mais complexas, porque achamos que o sistema também se presta a essas negociações. Não tem de ser exclusivamente automatizada para as pequenas, pode até ser programado pelos negociadores de compras das empresas, só que, ao invés de demorarem 100 unidades de tempo a fazer aquilo, demoram dez ou cinco. Têm ganhos, não só de tempo, mas também ao conseguir fazer muitas mais negociações, e muitas vezes com poupanças.

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De que forma é que, neste momento, podem potenciar o vosso crescimento?

Nós podemos potenciar o nosso crescimento em dois níveis: melhorando o produto e melhorando a parte das vendas. O nosso produto já faz razoavelmente bem o básico, que é permitir criar templates, negociar automaticamente com os fornecedores, registar as melhores propostas e adjudicar ao melhor. Agora, na parte business development é onde acho que nós temos um trabalho pela frente. Na parte do marketing digital, na parte das vendas, que muitas são feitas dentro da nossa rede de contactos, porque estamos a falar, ainda, dos nossos primeiros casos. Pretendemos melhorar a parte do marketing, melhorar os nossos materiais e depois sim, acelerar a exposição e melhorar as leads para virem ter connosco, que é algo que já está a começar a acontecer, felizmente. Como também vemos que existe esta lacuna no mercado, tanto em Portugal, como fora, é isso que nos vai permitir crescer. Estamos abertos a investimento externo, como já recebemos recentemente da Loyal VC, a capital de risco, a Business Angels, para alimentarmos nas duas frentes: melhorar o produto ao torná-lo mais escalável, e chegar a mais clientes.

Quais foram as vossas principais conquistas até agora?

Eu diria que até ao momento foi aprender com o mercado, validar o conceito de negociação que nós temos, mostrar a capacidade que temos em concretizar produto, que o produto que temos funciona bem, que consegue ser replicado em casos diferentes. Os primeiros clientes também são uma conquista importante. E o sinal que nós estamos a receber de clientes muitíssimo maiores, eu diria que isso, neste momento, talvez seja a nossa maior conquista. Ainda não temos nada fechado com estes potenciais clientes, mas estamos profundamente no radar e estamos a ter conversas sérias, já entrar no campo das negociações para fazermos uma coisa gira.

E qual a maior dificuldade que vocês tiveram até agora?

A maior dificuldade que nós tivemos foi mesmo ter acesso a programadores. Já não temos esse problema, já resolvemos uma forma efetiva e duradoura, mas sofremos imenso com isso, e não estamos mais perto da Pactum porque tivemos uns problemas com força de desenvolvimento. Tivemos de recorrer a empresas de outsourcing, o que pode ser uma boa experiência para muitos casos, mas no nosso caso, não foi. Perdemos com isto dinheiro e tempo, mas depois de percebermos o problema, conseguimos resolvê-lo estrategicamente. Fizemos uma aliança com duas software-houses, estamos próximos e estamos apaixonados, mutuamente, pelo projeto e pelas pessoas. Estamos muito coesos e a fazer desenvolvimentos que estão a funcionar muitíssimo bem. Mas estes momentos mais difíceis criaram cabelos brancos e rugas na cara (risos).

A azáfama do dia a dia não o impede de ir para o ginásio "partir ferro" ao longo da semana, mas é com a família e com os amigos que mais gosta de estar, e de partir à descoberta do país sobre duas ou quatro rodas. À medida que o seu "sexto bebé", a VN Tech, continua a dar passos firmes, a vida do André Dória gira à volta dos cinco filhos e da sua mulher, e é com eles que quer viajar quando forem mais crescidos.

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Como é que foram os teus primeiros anos de vida?

Sou natural de Coimbra, onde cresci e vivi toda a infância, fiz o liceu e até mesmo a universidade. Inicialmente, comecei por estudar física, mas por volta do segundo ou terceiro ano – já não me lembro ao certo- apercebi-me que o que gostava mesmo era de programação e da parte do desenvolvimento de produto. Por isso, decidi mudar de curso. Optei por não seguir informática, pois achava que era demasiado centrado nas bases de dados e em questões demasiado técnicas. Escolhi, então, eletrónica- ramos de computadores, porque achei que tinha uma perspetiva mais alargada, estava mais ligada à física, eletromagnetismos, programação e mais exposição à matemática, que era o que eu gostava na altura. Depois, em eletrotécnica, acabei por ter como disciplina preferida uma coisa que não tem nada a ver com a eletricidade: investigação operacional, que no fundo é o cruzamento entre matemática e tomada de decisão. Foi aquilo que eu gostei na altura. Houve outras cadeiras que também achei piada, cadeiras de programação, desenvolvimento de software, mas foi assim um bocadinho destas duas que posso dizer que mais gostei.

Então tiveste logo aí um cheirinho à tomada de decisões com base em modelos matemáticos…

Sim, até porque sou o tipo mais indeciso que conheço (risos). A minha mulher nunca me pergunta nada porque sabe que eu digo A e depois digo B, então não pode contar comigo para coisas importantes (risos). Mas isto acontece porque penso em demasiadas variáveis e acabo por arrastar a decisão. Daí a necessidade de recorrer a modelos mais estruturados para conseguir pôr alguns números, algumas probabilidades, alguns caminhos, pesá-los, e depois dizer “realmente faz sentido ir por aqui”.

E enquanto aluno, eras um aluno aplicado?

No liceu acho que era um aluno que tirava notas boas, mas não era o melhor dos melhores. Dava aquele tempo que era saudável dar aos estudos, o que eu queria era brincar, jogar à bola e todas as coisas que os miúdos querem nessa altura. Como eu não sabia o que é que eu queria estudar na faculdade, não posso dizer que tivesse uma luz que me iluminasse e dissesse “tens que ser bom nesta área”. Por isso, não era brilhante em nenhuma, mas era bastante razoável em todas. Só decidi o curso que ia estudar na faculdade no próprio dia em que tive de preencher o formulário da candidatura (risos). Lembro-me de estar lá na cozinha, às cinco da manhã, a andar de um lado para o outro lado, e pensar “que se lixe, vou para física”. Pareceu-me ser um curso que ensina a pensar, na altura tinha lido alguns livros de física experimental, física teórica, o cruzamento com matemática, e eu achava aquilo lindíssimo, não compreendia nada, mas achava aquilo lindíssimo, e pensei, “é pá, vou levar uma boa dose de martelada, acho que na pior das hipóteses, vai fazer bem, ajudar-me a pensar, estruturar o raciocínio e depois logo vejo o que quero fazer”, mas na altura senti que queria um bom desafio e estava aberto a levar pancada (risos).

E o que é que gostavas de fazer quando eras mais novo?

Ia ali para o quadrado, que era aquele terreno ao lado da casa onde os vizinhos do bairro juntavam-se para jogar futebol. Gostava de fazer isso, gostava de brincar com os meus primos, gostava de dormir em casa deles, adorava passear com a minha mãe pelo Choupal, pelo Jardim Botânico em Coimbra, de fazer programas com os meus avós e brincar com o meu irmão. Tenho ascendência alemã, por isso também era muito bom irmos, no Verão, ter com a nossa família na Alemanha. Deu-me exposição à cultura e à língua, o que foi bom, porque mais tarde acabei por ir para lá viver. Já dominava minimamente a língua, então acabei por enraizar-me facilmente lá e tive uns bons anos lá quando acabei o curso.

Como é que atualmente é dividido dia a dia?

Hoje o meu dia a dia é binário: ou é trabalho ou é família. Não tenho grande tempo para hobbies. Quer dizer, tenho um que é algo que eu gostava muito e fazia antes de ter assim uma família maior, que era pegar na minha bicicleta, com um amigo, com quem comecei a dar estes passeios, ou com a minha mulher, e de repente, surge o pensamento de preparar o mínimo indispensável e seguir pela estrada, sem destino definido. Diria que isto é o que mais gosto de fazer fora deste meu universo binário atual.

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Universo binário muito focado nos teus filhos.

Muito focado nos nossos cinco filhos! Uma família mesmo grande, sobretudo para os dias de hoje, no entanto, pequena para a escala da minha mulher, que tem 12 irmãos. Mesmo assim, ela quer ter mais filhos e eu acho que já estamos numa zona em que estamos absolutamente realizados (risos). É um desafio grande, como podes imaginar.

E tentas também incutir-lhes este bichinho dos passeios em bicicleta?

Às mais velhas, sim. Já fizemos umas pequenas pedaladas com elas. Primeiro atrás nas cadeirinhas, agora nas suas bicicletas. Lá em casa toda a gente tem a sua bicicleta, até o Manel, que tem 11 meses, já tem um triciclo, para nos prepararmos para dar as nossas passeatas em família. Ainda não demos assim nenhuma que eu possa dizer que juntou toda a gente, mas fazemos aquelas pequeninas. Ir até ao parque da cidade, aqui no Porto. Ainda não realizamos o nosso projeto de irmos todos juntos até Vila do Conde, e ficarmos lá a dormir e depois voltar no dia seguinte.

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E sempre gostaste de o fazer?

Nem por isso, só surgiu quando era mais velho. Tendo uma certa ligação à comunidade Jesuíta cá em Portugal, comecei por fazer campos de férias quando era pequeno, e mais tarde cheguei a animar alguns desses campos. Aí aprendi a fazer um estilo de vida mais frugal, e lancei um desafio a dois amigos meus. Um acabou por aceitar, na altura tinha 30 e poucos anos, e que era o seguinte: “porque é que não fazemos como fazem aqui alguns destes jesuítas, que é pegar no mínimo indispensável, numa mochila, não levam dinheiro, e vão em frente, andam e andam e andam, vão em meditação, vão em oração, sem grande percurso definido? Experimentar o que realmente é a vida da forma mais simples possível?”. Isto tudo porque eu via estas pessoas a chegarem a casa completamente realizadas e preenchidas, e não tiveram de fazer um cruzeiro. Não tiveram de ir a Ibiza, não tiveram de fazer qualquer coisa assim.

E no fundo é essa a recompensa que tu tens quando pegas na bicicleta e vais sem destino?

É isso que eu sinto e é profundamente enriquecedor. Comecei pelos Caminhos de Santiago, a pé. Uma semana depois, com esse meu amigo, partimos com as nossas bicicletas levando apenas uma bolsa. Tal como nos Caminhos de Santiago, evitámos levar mochila, então éramos os peregrinos mais rápidos a chegar a Santiago de Compostela. Íamos apenas com uma t-shirt vestida e com uma cinto com uma t-shirt extra, um sabão azul para lavar a t-shirt e para tomarmos banho para o dia seguinte, uns chinelos para quando chegássemos aos albergues, e é exatamente esse espírito que levamos depois para as passeatas de bicicleta. A diferença é que, em vez de percorrer 20 ou 30 km por dia, fazíamos 100 km diariamente, o que nos permitiu chegar a Grândola em apenas cinco dias, na primeira vez que fizemos esse passeio de bicicleta. A questão era: para onde apontamos? Norte, Sul ou interior? Optámos pelo Sul, onde é mais quentinho, e foi assim, sem destino certo.

Foi o sítio mais longe que já foste sem destino?

Nós já fomos ao Algarve. Chegámos a Faro e tínhamos um programa de ir de Faro até Tarifa, mas agora com filhos é mais complicado. Já apontamos para cima, fomos a Santiago e, às vezes, quando temos pouco tempo, só um dia livre ou uma tarde livre, vamos da Figueira da Foz até Coimbra, comemos qualquer coisa na Mealhada e depois voltamos de comboio para a Figueira. Temos de nos a adaptar ao tempo disponível que temos, mas a nossa ideia, se o tempo fosse mais generoso para mim e para este amigo, seria pegar nas bicicletas e ir talvez até ao Sul de Espanha. Este bichinho depois passei-o lá para casa também, como te disse, passei-o para a minha mulher. Antes do nosso casamento, quando ainda namorávamos, fizemos o Caminho de Santiago de bicicleta.

“Os bebés da minha família e o bebé que é a startup, todos eles podem chorar ao mesmo tempo”

E como é conciliar a vida de empreendedor com a de pai?

Eu acho que não é bem conciliar, acho que é mais “sobreviver”. Mas não é de todo impossível: significa apenas ter vários bebés: os bebés da minha família e o bebé que é a startup, e todos eles podem chorar ao mesmo tempo. O meu tempo livre é quando os meus filhos estão na escola. Quando voltam para casa, são o meu foco absoluto. Mas a startup também chora e chama por mim, enquanto os meus filhos também estão a chorar, então aqui tem que ver com conseguir equilibrar-me, sem cair, nesta corda que é tão fininha e comprida. Depois, combinando isto com noites não tão bem dormidas, em que um tem tosse, outro está doente, acordar cedo para preparar tarefas para a empresa, depois os pequenos-almoços, e só depois disto lá vão eles para a escola. Aí sim, tenho paz de espírito (risos), posso trabalhar, trabalhar, trabalhar ali a 200, 300%. Depois chegam a casa, brincar, banhos, vão-se deitar e trabalho mais umas horas na startup. Às vezes, ao fim de semana também, tem de ser. A conciliação não é fácil, mas recompensa, caramba. Nesse aspeto sinto-me uma pessoa bastante realizada. Adoraria que a empresa levantasse voo mais rapidamente, confesso, mas sinto-me bem, sinto-me realizado com estas dádivas que me têm acontecido.

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E o que te tira mais o sono? A empresa ou os bebés?

São os bebés (risos).

Tirando estes grandes passeios de bicicleta, há algo com que ocupes o teu tempo diariamente?

Vou “partir ferro” para o ginásio (risos). Acho que ajuda muito, e tenho começado a ser um bocadinho mais regular. Tenho lá um PT que me vai ajudando, orientando. Eu disse-lhe: “o meu objetivo é não ter de pensar em nada. Faz tudo por mim. Só tenho de levantar pesos e fazer o que tu mandas”, e tem sido uma boa experiência. Gasto lá uma horinha por dia e consigo recuperar as energias, dá-me aquele boost a vários níveis. Limpa a cabeça, depois posso estar o dia inteiro em casa ou no escritório, e não estar preocupado com mais nada.

Onde é que tu te vês daqui a cinco anos?

Gostava de me ver numa fase diferente do crescimento da empresa, já mais em autopilot, onde não fosse tão necessário como sou atualmente, para ter mais tempo livre para a família e podemos começar a fazer nossas passeatas de bicicleta ou de autocaravana, que já fizemos um par delas e todos adoramos.

E como é que vês o mundo daqui a cinco anos?

Isso é uma pergunta que me deixa algo angustiado por causa destas questões geopolíticas, destas guerras. Rússia, Ucrânia, Europa, Ocidente, Israel, Hamas, Palestina, Médio Oriente. Acho que estas coisas estão a começar a aumentar, estão a passar de focos a conflitos regionais, e tenho muito medo de que isto se converta naquilo que as pessoas falam. Uma coisa mais em escala e repetir aquilo que já se passou há 70 anos. Esse é o meu maior receio… Mas também vejo com algum brilho e algum otimismo, sobretudo na combinação da tecnologia com novas formas de trabalhar, com novas formas de evoluir com humanidade, muito baseadas neste avanço da IA. A tecnologia está tão omnipresente que há muitas coisas positivas que podem sair daqui.

Achas que estes conflitos mundiais precisavam de ter um livrinho como o do Horácio para ajudar a resolver os problemas numa situação win-win para todos?

Eu acho que já chegam tarde demais nessa altura. Acho que deviam ter sido incutidos enquanto eram crianças, ou enquanto estavam na escola. Isso era muito mais eficiente, porque o que realmente move o mundo são as dinâmicas de poder e estas deveriam ser compreendidas e assimiladas o quanto antes, para as saber navegar. O objetivo das nações é serem mais poderosas. E a partir do momento em que esse é o objetivo dos governantes e das nações, então eles querem garantir que mantém essa supremacia de poder. Isso consegue-se a vários níveis: a nível económico – tendo mais para mim, deixando o outro ter alguma coisa, mas trazendo mais para mim; a nível militar e de defesa – para conseguir reter aquilo que tenho, em termos da mensagem transmitida aos próprios habitantes; então acho que há aqui uma grande troca de prioridades e não vejo uma alteração grande de mentalidade nos próximos tempos. A coerção e as ameaças vão gerar um efeito muito nocivo de resistência do outro lado e de contra-ataque, e é por isso que nós não conseguimos chegar a um equilíbrio que seja saudável. É este o problema da relação entre as nações mais poderosas e as menos poderosas. Não é utilizado um pensamento win-win.

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Qual é a tua maior virtude e defeito?

Segundo a minha mulher, talvez espontaneidade. Diz também que falo com alguma facilidade, apesar de eu não estar muito de acordo (risos). Já na minha opinião, adoro um bom desafio e montar uma estratégia para o ultrapassar. Como defeitos sofro de um mal chamado desorganização e de não gostar muito de rotinas. E pensando melhor, se calhar até é este cruzamento de ideias desarrumadas que me leva a pensar algumas coisas de forma diferente!

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Portanto, pode ser visto como uma virtude. Procuras sempre encontrar formas de mitigar os teus defeitos?

Isto é uma resposta à consultor, não é? (risos) Os meus grandes defeitos são estes, mas apresentados desta forma, até soam positivos (risos).

Tens alguma palavra preferida?

Acho que essa palavra é Filho. A palavra que mudou completamente quem eu sou como pessoa. A partir do momento que se passa a ser pai, já não somos mais miúdos. Agora já é a sério.

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E há alguma data esteja gravada na tua memória?

Há algumas. Umas pelas piores razões, outras pelas melhores. Pelas melhores razões é o nascimento dos filhos, claro. A data do meu casamento. E a fundação da Startup, em 1 de agosto de 2019. As outras têm a ver com familiares que já não estão cá.

Para finalizar, diz-me três coisas que gostarias de fazer na tua vida.

Um objetivo enorme que eu tenho é pôr empresa a levantar voo, sem dúvida. A outra é ter os filhos bem formados, independentes, autónomos, com os valores no sítio, capazes de tomar as suas decisões. A terceira seria ter mais tempo livre para fazer estas escapadelas de bicicleta, umas feriazinhas, ou estar mais tempo com a minha mulher e amigos, ter mais tempo para descontrair e ligar a ficha à terra.

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30 de abril de 2024

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