Rita Campos Costa: “O trabalho do artista é muito parecido com o do cientista”
Rita Campos Costa: “O trabalho do artista é muito parecido com o do cientista”
Ao fim de dez anos de provocação e irreverência, Rita Campos Costa está preparada para deixar a vida rolar. Tem ajudado crianças e adultos a crescer ao som da música, e é nessa nota que impacta a vida de muitas comunidades. Na sua fornada de “Gambozinos”, encontrou as “Sopa de Pedra”, e atualmente não dispensa o “molho” onde o cérebro tem de ficar para poder ser a força criativa que é. Não percas esta edição do Out of Office sobre a mentora do Frenesim, mas… é para ler com calma.
Rita, o que é o Frenesim?
O Frenesim é uma cooperativa cultural cujo trabalho assenta na comunicação entre as pessoas, o território e a arte. O nosso trabalho é fazer projetos artísticos de inserção comunitária, ou seja, trabalhar um território, trabalhar as pessoas com uma comunidade, que têm algo em comum, e usar a arte para aproximá-las. Para nós, comunidade é um grupo de pessoas que têm algo em comum.
De que modo é que ativam essas comunidades?
O nosso trabalho é agregá-las, é tornar aquelas pessoas numa comunidade fértil, e fazemo-lo através da arte. Começa com pequenas provocações artísticas, utilizamos jogos, dinâmicas artísticas e comunitárias, e começamos a retirar informação da comunidade, e a construir um processo artístico. No final deste processo artístico poderá surgir um espetáculo, que é o que acontece a maioria das vezes. Uma tertúlia, um jantar, um banquete surrealista onde nenhuma comida é comida – algo que nós gostaríamos muito de fazer para toda a UPTEC -, uma instalação sonora, uma exposição como a Loop Station que fizemos na UPTEC Baixa, onde ela própria era uma forma de estar em frenesim… Tinhas um telefone que tocava, havia alguém a falar contigo, que te fazia uma pergunta, deixavas a tua resposta e gravava, tinhas um espelho que te permitia ver o que está atrás de ti, tinhas piropos para deixar nos casacos dos colegas quando não sabes o que lhes dizer e, portanto, é muito isto: é provocar, provocar, provocar.
E que tipo de comunidades costumam trabalhar?
Trabalhamos com grupos de pessoas que têm algo em comum, seja o lugar onde vivem, por exemplo, trabalhar pessoas de um bairro social, onde podemos pensar “porque é que este bairro é assim? O que é que trazemos ao bairro? E o que é que o bairro nos traz?”. Trabalhamos com instituições, por exemplo, uma de Esposende para pessoas com demência, trabalhamos com grandes empresas ou equipas mais pequenas, trabalhamos na área da saúde mental com a Santa Casa da Misericórdia, entre outros.
Um trabalho que achas que é valorizado?
Parece bastante abstrato e bastante intangível. O que é que se faz então? E, por vezes, é confundido com aqueles workshops, team buildings de “vamos todos cantar” ou “vamos todos pintar” e não, tem muito mais que ver com o lirismo que a vida nos traz, a beleza e a palhaçada, do que propriamente fazeres uma coisa muito bem.
E como é que tudo começou?
Há um tempo atrás… na ilha do Sol (risos). O Frenesim nasceu quando nasceu o meu primeiro filho, e não foi por acaso. Estas histórias são indissociáveis. Eu engravidei sem querer, isto é conhecido por toda a gente, com o Zé, o meu parceiro no Frenesim, que nem sequer era meu namorado, e então decidimos experimentar viver, fazer vida juntos. Primeiro foi um filho, depois o Frenesim, e depois outra filha, e o Frenesim foi crescendo, e já tem 10 anos! O Frenesim nasceu e cresceu sempre, para bem e para mal, organicamente. Nunca tivemos de procurar trabalho, nunca tivemos de pensar no que íamos fazer, porque estava sempre a aparecer algo, o que é bom. E também surgiu porque eu dava aulas de música.
“Gosto da ideia de que está tudo sempre em transformação”
Foi nessa área em que te formaste?
Na verdade, eu estudei Direito, mas comecei a dar aulas de música para pagar a tese de mestrado em Direito à Educação, e a achar que dar aulas era muito mais fixe do que exercer Direito (risos). Na altura vivia em Lisboa, mudei-me para o Porto, e dei muitas aulas de música em colégios, escolas, também em lares, e foi ao chatear-me com a ideia do que se tinha de fazer e lecionar na escola, onde me questionava do porquê de termos de fazer determinadas coisas com os miúdos, quando eles têm muito mais para dar. Saí das escolas e houve um grande grupo de pais, de uma escola pública, que me disseram: “Professora Rita, agora crie alguma coisa porque nós não vamos ficar sem si” e assim foi. Um mês depois, pedi uma parceria à Casa das Artes do Porto, fizeram-nos uma cedência e lá estivemos durante seis anos, onde criámos um serviço educativo que chegou a ter 160 pessoas, todas as semanas, dos bebés aos avós. Ainda temos alguns connosco, que agora têm 16 anos, e começaram com três, portanto, foi mesmo acompanhar vidas de famílias e de escolas.
E o nome de onde é que veio?
Na altura havia outro nome que era bastante mais estúpido (risos), mas os nomes, tal como os nomes de bandas, conseguem ser mesmo aleatórios… sei lá, os Beatles, é um nome ridículo, os carochas, mas depois os nomes pegam e são sonantes só porque sim. Eu própria sou um Frenesim, e gosto da ideia de que está tudo sempre em transformação, está tudo sempre a acontecer, e está sempre tudo a borbulhar.
O que é que vos fez escolher a UPTEC?
Acabamos por sair da Casa das Artes, e foi quando surgiu o convite do André Forte da UPTEC, que nos abriu a porta e convidou-nos para vir para cá. A ideia de virmos para a UPTEC, e em particular, aqui para a UPTEC Baixa, seria podermos criar uma rede entre as empresas. Mais do que uma rede de trabalho, – porque acabamos por estar cada um no seu escritório, temos todos imenso que fazer e, portanto, é uma ilusão acharmos que vamos criar uma grande rede de trabalho, mas sim uma rede de algum reconhecimento de “estamos aqui, há uma coisa que nos une, e não é só um espaço para onde vimos trabalhar”. Este era um dos nossos grandes objetivos. Criámos o coro de adultos à noite, criamos um laboratório artístico, também todas as quartas-feiras, mas de manhã, ambos gratuitos para toda a comunidade UPTEC, onde o objetivo é precisamente trabalhar a metodologia Frenesim, trabalhar o processo artístico e comunitário, criar projetos com os adultos que querem vir aprender a criar projetos com as mãos na massa. Não trabalhamos muito a teoria, trabalhamos a prática e informamos com teoria.
O que é que gostas mais da comunidade da UPTEC?
Desde logo, o local onde estamos. A UPTEC Baixa é mesmo inspiradora, este jardim é incrível, este edifício tem uma sensação muito boa, temos uns vizinhos maravilhosos. Gostamos de falar muito nos nossos vizinhos. Gostamos desta ideia de trabalhar a vizinhança, seja ela onde for. Agora, não é por acaso que é uma incubadora. Somos uma indústria criativa, artística e cultural. Não somos nem científica nem tecnológica, muito embora utilizemos a tecnologia num sentido artístico. O Zé, que é o outro lado da direção artística, é compositor e é músico eletrónico. Muitos trabalhos que fazemos, incluindo com bebés, é muito debruçado sobre música eletrónica, sobre o potencial da tecnologia na arte. Ainda assim, somos uma cooperativa cultural, artística e, portanto, não dá tempo para tudo. O nosso trabalho é muito fora, mas gostava que pudesse haver uma coisa de todos, uma coisa que é feita presencialmente. Sejam estas provocações que vão acontecendo, e que faz com que as empresas, de alguma forma se unam, e que exista um sentimento de que estar aqui na UPTEC, não é igual a estar noutro lado qualquer.
E este “Coro em Movimento” é uma boa forma de dinamizar a comunidade, seja a da UPTEC ou externa?
Sim, a ideia de criar o coro é porque acho que todos sabemos cantar. Esta é a minha luta. Cantar é para todos, a não ser que tenhas um problema grave de audição ou nas cordas vocais, cantar é um treino. Muitas vezes perguntam-me o que é que eu posso fazer para cantar bem? E a minha resposta é “tens de cantar muito”! É como se fizeres um desenho por dia, ao fim de um mês, vais desenhar muito melhor. É como fazer a espargata, a não ser que te falte uma perna ou que tenhas graves problemas nas articulações, se treinares todos os dias a elasticidade, vais conseguir fazer, e esta é a base. Há muita gente que tem medo de cantar, que acha que é desafinada, que tem vergonha, e é por isso que criamos este coro, que já tem muitos anos, já existia antes de termos vindo para a UPTEC. O coro é mais antigo que o próprio Frenesim, e gostamos da ideia de que “cabe toda a gente aqui”. As pessoas até dizem: “se eu cantar mal, expulsa-me”, e a minha resposta é sempre que a magia vem das vozes todas juntas.
E quem é que faz parte do coro?
Temos pessoas muito diferentes, em termos de profissões, de feitios, de referências. Não temos mesmo nada que ver uns com os outros. No entanto, cria-se aqui uma pequena bolha de espaço e tempo, um sentimento de escola, de campo de férias, de Erasmus. Em que alguém faz anos, e traz um bolo porque vai festejar com a família do coro. Depois saímos daqui, estamos no centro da cidade, vamos petiscar e vamos beber um copo.
“Se estou a pedir às pessoas que se envolvam emocionalmente, intelectualmente e artisticamente, eu também tenho de o fazer”
O que é que costumam cantar?
Costumamos cantar Beatles (a minha banda favorita), Zé Mário Branco, Portishead, Mercedes Sosa… Músicas e artistas fantásticos. O repertório é muito relaxado, não achamos que um coro se faça pela afinação, mas sim por estarmos todos a curtir uma música juntos. Depois disso acontecer, aí é que vamos trabalhar a parte técnica. Primeiro vem a parte pessoal, e depois vem a técnica, e acho que, muitas vezes, as propostas artísticas, e não só na verdade, são ao contrário.
Nota-se que existe uma paixão muito grande por esse projeto.
Sem dúvida. As pessoas que vêm para o Coro também procuram um hobbie, não é? Eu normalmente saio do trabalho e desligo o rádio, é o oposto do que é o meu dia, é silêncio. No entanto, todas estas atividades artísticas e culturais que proporcionamos, e que se cruzam com os hobbies de muitas pessoas, já é o meu trabalho. E não se pode fazer isto sem prazer. Há um ano, por exemplo, parei de trabalhar durante três meses por sentir que isto não estava a ser bom. Este trabalho pede muito de nós, porque se estou a pedir às pessoas que se envolvam emocionalmente, intelectualmente e artisticamente, eu também tenho de o fazer. E depois existe a conjuntura portuguesa e internacional, pois o trabalho artístico, em cultura, é precário. Então procuramos um trabalho que nos dê prazer e que pede muito de nós, pois é uma coisa que já sabemos que não é para enriquecer.
Esse sentimento não pode prejudicar o teu processo criativo?
Ultimamente tenho falado muito sobre a diferença de criar e produzir. Os artistas começaram a criar como quem produz, então na pandemia foi claríssimo. Tu tinhas de produzir para ter dinheiro, incluindo as propostas de apoio do Estado. Tinhas sempre uma função, como se a arte tivesse uma função que não servisse a si própria, e isto é a grande discussão, é por isso que não há apoio artístico suficiente, porque ainda não se percebeu que a arte é importante porque sim. Não porque é importante para o desenvolvimento do cérebro, porque é importante para a matemática, etc. Não, é importante porque sim, porque é com arte que nos questionamos, e ao questionarmo-nos estamo-nos a desenvolver.
Estes projetos entre outros, como os coros instantâneos, as oficinas-concerto para bebés, acabam por exigir muito de ti…
Há dias de trabalho cheiíssimos, todas as quartas-feiras trabalhamos das 9:30 às 22 horas, então tem de haver tempo para não fazer nada, e sem vergonha. Nós paramos, todos os anos, um mês inteiro em agosto, 15 dias no Natal, 15 dias na Páscoa, e ainda assim, vamos tirando férias a meio, porque o cérebro precisa de estar de molho para ter novas ideias. Eu e o Zé, que também é o meu companheiro de vida, aprendemos que temos de parar, temos de sintonizar, e não vamos stressar se as ideias não vierem logo. Vamos parar tudo o que estamos a fazer, e vamos só estar bem juntos, falar, pensar neste projeto, mas sem pressão de ter ideias. Vamos passear, vamos para a praia, vamos almoçar fora, vamos fazer coisas que não costumamos fazer, até porque o cérebro do ser humano é preguiçoso; vai seguir sempre o caminho mais fácil, que não é o da criatividade, mas sim o mais previsível, por isso, é mesmo importante obrigá-lo a seguir novos caminhos.
Sem criatividade não existe progresso?
Há um livro muito interessante do Planeta Tangerina que se chama “Como ver coisas invisíveis – observações, experiências e perguntas de artistas, cientistas e outras pessoas com imaginação”, e é um livro que compara a ciência com a arte. É muito interessante porque muita gente vê que nós fazemos parte de um parque de ciência e tecnologia, e perguntam o que é que tem que ver connosco, e a realidade é que o trabalho do artista é muito parecido com o trabalho do cientista, no sentido de que o nosso trabalho não vem de “ah, tive uma ideia genial”, mas vem sim de observar a realidade, organizar a realidade, baralhar tudo, perceber as variáveis, reorganizá-las, categorizar, padronizar e perceber, através de referências do que ouve e de exercícios de erro-ação, se se consegue chegar a novos lugares, e isto é igual com a ciência.
O vosso percurso de trabalho comunitário tem uma passagem na Grécia, em 2017, por um campo de refugiados. De que forma é que o teu trabalho tentou ajudar aquela comunidade?
Na realidade, eu não gosto nada de falar sobre esse tema, sobre este trabalho, e posso explicar o porquê… primeiro, porque há sempre um certo embaraço e vergonha, que tem que ver com a ideia de que estás lá muito pouco tempo para aquilo que aquelas pessoas precisam. E é impossível não saíres de lá com o sentimento de “vais lá, faz umas coisas e vens embora, voltas para a tua vidinha incrível que tens aqui, para o teu T3, com os teus filhos que comem cornflakes ao pequeno-almoço”, e isso faz-me um bocado de confusão no sentido de que este mundo é um sítio horrivelmente injusto. Por outro lado, descobri no campo de refugiados que estava grávida da minha segunda filha e, portanto, tenho sensações muito estranhas. Estava permanentemente mal disposta. Nós fomos para um campo afegão, cuja guerra nunca deixou de existir, e que tem gente que está lá, e que vai morrer lá, porque é um campo já há muito estabelecido. Então estar a trabalhar lá e a pensar “isto é o que lhes resta” é um sentimento muito difícil de lidar.
Como é que consegues mitigar esse sentimento?
Tentando fazer capacitação das pessoas que estão lá de forma mais prolongada. Por exemplo, atualmente nós trabalhamos numa clínica de reabilitação, e ao chegarmos lá, temos um impacto tão grande e diferenciado, que as pessoas que lá estão todos os dias perguntam-nos como é que fomos capazes de trazer uma série de coisas que influenciaram positivamente os pacientes, e é claro que isso é bastante injusto para quem lá está, todos os dias, a cuidar deles. Como tal, tentamos passar a trabalhar numa forma de capacitação das pessoas que estão nos locais, dar formação, de modo a que o efeito daquilo que nós fazemos possa ser multiplicado. Este potencial de continuidade é algo muito importante para mim, e foi algo que aprendi no campo de refugiados.
Focaram-se em trabalhar mais com crianças?
Inicialmente era com crianças dos seis aos nove anos, mas a certa altura, os pais das crianças começaram a vir bater-nos à porta a dizer que também gostariam de trabalhar connosco, e depois vieram os adolescentes, então acabamos por trabalhar com todo o campo. No final, escrevemos um livro que ficou lá, onde estabelecemos e enquadramos a metodologia Frenesim, porque é que trabalhamos assim, fases de trabalho de uma sessão, fases de trabalho de um projeto, o que ter em conta, como fazer algo acontecer, escrevemos referências artísticas, jogos de quebra-gelo, e foi a primeira vez que segmentamos a nossa forma de trabalhar.
Ao longo destes dez anos de Frenesim, qual consideras ser o momento mais positivo?
Agora! Estamos com uma data de mudanças, outras coisas menos boas, e muitos projetos, mas estou muito tranquila, e isso é incrível. É a sensação de que ninguém vai morrer, nada é urgente. Eu não sou médica, nem juíza, posso fazer as coisas com calma. O mundo não me vai fugir das mãos. É esta sensação de que está tudo bem, estou a ver o caminho, trabalhar por projetos e ter uma sensação de tranquilidade, porque nós já temos o ano de 2024 fechado, mas estás sempre a ter de pensar no que virá a seguir. Apesar disso, eu estou na plena posse das minhas capacidades e não estou com medo. Nós trabalhamos até aqui para fazer isto acontecer desta forma. Estou segura de que o que faço é muito bem feito. A partir do momento em que comecei a trabalhar menos, a priorizar, eu faço o dobro. Estou a trabalhar muito melhor, porque já não estou perdida dentro de mim, dentro de todos os meus papéis. Existe agora uma linha de pensamento de dar sempre o meu melhor, mas por vezes não dás, e está tudo bem, porque se estiveres sempre a dar o teu melhor, é quando chegas ao fim do dia, e já não tens mais nada para dar. Chego a casa e tenho filhos, em que condições vou estar com eles? Tenho de estar bem, portanto, agora sinto-me muito bem.
A intolerância ao glúten não lhe tirou vontade de descobrir toda a cor que o mundo lhe podia dar. Os diferentes estímulos que teve ao longo da vida fizeram abrir o seu espectro de criatividade, e num percurso cheio de acasos, nada como a sua palavra favorita, capaz de fazer corar de vermelho os mais puritanos, para ser o catalisador de um dos seus objetivos de vida: não “amarelar” e ir viver um ano, com os filhos, para a pureza verde dos Açores.
Como foram os teus primeiros anos de vida?
Nasci no Porto a 18 de julho de 1988. Os meus primeiros anos de vida ouvi dizer que foram tramados, estou a aprender isso agora na psicóloga (risos). Não deixo nada para dizer! Ouvi dizer que foram tramados porque tenho uma doença celíaca, que quer dizer que não posso comer glúten, algo que está na moda, mas não posso mesmo, tenho uma doença desde que nasci, então passei os dois primeiros anos de vida, segundo a minha mãe, a chorar cheia de dores, mas eu não me lembro de nada (risos).
E de onde veio a tua vertente artística?
Acho que aquela ideia de que as coisas nascem connosco é uma falácia. Até se diz que a arte é 10% talento e 90% transpiração, portanto, só se forem esses 10%. Acho que tenho um tipo de personalidade muito curiosa, e acho que essa é a base deste trabalho, é seres curioso com o mundo. Lembro-me desde sempre que o meu sonho era ser famosa (risos), não era nem ser música nem atriz, era ser famosa. Que ridículo, não é? (risos) E lembro-me que o meu grande problema era que no dia em que for famosa, vou andar na passerelle e como não sei andar de tacões, vou cair (risos). Mas eu estudei música toda a vida e foi algo que me formou muito. Não só a música, mas a forma como estudei. Estudei dos três aos 18 anos numa escola chamada “Gambozinos”, que é uma associação cultural do pós 25 de Abril, muitíssimo importante naquela data, muitíssimo revolucionária, muitíssimo de resistência. Foi uma escola de vida, apesar de eu ter estado lá a estudar música, tinha uma data de atividades, incluindo o “Pensar ao Lado”, que era ao sábado de manhã. Os meus melhores amigos são de lá. Eu era adolescente e íamos ao sábado de manhã ao “Pensar ao Lado” para falar sobre temas do mundo. Ler notícias, perceber o que é que se passava, perceber ao lado do que nos dizem. Refletir, associar, discutir. E foi uma formação de música muitíssimo diferente. Eu cantei desde muito nova com o Sérgio Godinho, com o Zé Mário Branco, com a Amélia Muge que, para quem conhece, são pessoas muito importantes. Eu lembro-me de me sentir muitas vezes deslocada, apesar de ser bastante desembaraçada na escola, porque ouvia este tipo de músicas e as crianças não ouviam este tipo de coisas. E eu era a única que não era batizada, também era complicado. A minha professora primária dizia: “veem, é a única que não é batizada”, eu e o Diogo Reis e tinha muita vergonha (risos). Pedi à minha mãe para ser batizada e a minha mãe respondeu, “pode ser, mas tens de ir à catequese, não vais ser só batizada. Mas para ires à catequese, tens de deixar os Gambozinos e a música, queres?” E eu: “Não, deixa lá” (risos).
Como é que surgiu a ideia de criar as “Sopa de Pedra”?
A maioria das minhas amigas da “Sopa de Pedra” são dos “Gambozinos”. Surgiu sem querer, como em tudo na minha vida (risos). Engravidei sem querer, fui para Direito sem querer, tudo na minha vida é sem querer. Não contei ainda esta parte, mas eu até ia para teatro. Eu sempre soube que ia para teatro, mas quando fui entregar a ficha ENES, encontrei lá uma colega, nem sequer era amiga da escola, que me disse “vou para Direito, e tu?” e eu “Vou para teatro”. “Para teatro? Que desperdício, tens média de 18, porque é que vais para teatro?” então lá me inscrevi em Direito… E sabes aquela história dos Monty Python, chegar a casa e dizer aos meus pais: “Mãe, pai, tenho uma coisa para vos contar. Não se zanguem, mas eu afinal vou para Direito” e eles passaram-se (risos). Mas eu fui na mesma e adorei estudar Direito. Havia tanta coisa para aprender, adorei estudar aqui na FDUP, e essa é outra das razões pelo qual gosto tanto de estar no Baixa, porque olho para a FDUP e lembro-me que fui muito feliz. E com a banda foi igual. Nós éramos amigas, saíamos muito juntas, cantávamos muito, e uma vez o Pedro Lamares, que é ator, e que estava muitas vezes connosco, disse que nós devíamos ir cantar ao “Pinguim”, e depois uma pessoa qualquer, que era manager de uma banda, disse que nos ia arranjar uma tour, e que se corresse bem, que ficava connosco (risos). A nossa banda tem dez elementos, e nem todas andaram nos Gambozinos, aliás, temos uma teia de relações inacreditáveis. Duas delas são irmãs. Outras duas são primas diretas pelos dois lados, portanto, dois irmãos casados com duas irmãs. Eu sou prima em terceiro grau destas duas. As duas irmãs viveram em Macau, e viveram lá com outra ao mesmo tempo, depois de serem amigas de escola e nunca mais se terem visto. Depois, acabei por viver com uma das irmãs em Lisboa. A outra irmã fez Erasmus com outra amiga nossa na Holanda. Depois estas duas viveram, a seguir, em Londres. Depois, quatro delas viveram juntas, e a nossa vida foi sempre assim. Vivemos muitas vezes juntas umas com as outras e a banda foi surgindo. Foi mesmo por acaso.
E como está o projeto?
Não está parado, porque recebemos imensos convites, mas temos de os recusar porque todas nós estamos ocupadas com os nossos projetos. Eu tenho o Frenesim, ou seja, não está parado por falta de público nem por falta de interesse, mas sim por falta de mão nossa nisto.
É quase como combinar um jantar (risos).
É muito difícil, e depois as coisas começam a crescer. Se dantes era “vamos cantar ali” e íamos, de repente tornamo-nos numa das primeiras bandas de mulheres – já existiam muitas associações -, a recolher música tradicional, a trazê-la para o contemporâneo, a refazê-la, e a funcionar como banda e não como uma associação. E a decisão sobre os projetos que podemos aceitar são tomadas por unanimidade. Já nos pediram para figurar em anúncios de televisão, e basta uma dizer que não, que não se faz, e estamos todas bem com isso. Participar na Eurovisão? Não. Agora ir cantar no 25 de Abril ao Palácio de São Bento? Não temos as condições reunidas para isso, e estamos bem com isso. Portanto, não temos muitos concertos porque é difícil conciliar tudo, mas vamos agora a Paris cantar, no âmbito do 25 de Abril.
O que é que mais é mais indispensável na tua vida?
Férias. Não sei se já me perguntaste isto ou se vais perguntar “o que é que eu preciso na minha vida, se pudesse escolher uma coisa”? Mais dinheiro. Mais dinheiro para ter mais férias. Para poder não estar sempre a pensar e a fazer contas. Não é só contas de dinheiro, mas contas estratégicas, de vida. Para mim, indispensável é descansar. É sair daqui! É não estar sempre com a culpa de trabalhar (risos)! É mesmo indispensável. É lazer, e lazer não são hobbies. Lazer é estar com amigos, é ir jantar fora, é não estar sempre em loop de trabalho, e a sentir que tenho coisas para fazer. No mundo em que vivemos, o trabalho é interminável, nunca tem fim. Portanto, para mim, férias são uma necessidade absoluta. Como estamos agora num período mesmo difícil de trabalho, vou tirar férias daqui a duas semanas. Vamos passar seis dias fora com nossos filhos e, daqui a um mês, faremos outra viagem de seis dias, eu e o Zé. É indispensável.
“Daqui a cinco anos, eu gostava de parar um ano com os meus filhos”
Onde é que te vês daqui a cinco anos? Costumas fazer planos a longo prazo?
Nada, há quem diga “um dia vou para o Frenesim e vou-te fazer os planos de negócios” (risos). Nada, não sei. Não faço ideia. Podia nem estar aqui, podia nem existir o Frenesim. Já tive muito apego de “isto não pode acabar” e agora não tenho, até pode nem existir. Sei lá o que é que vai acontecer. Coisas boas, de certeza. Não vou ter mais filhos, posso garantir, que já chega de noites sem dormir (risos). Daqui a cinco anos, eu gostava de parar um ano com os meus filhos. É uma coisa que já queria ter feito, mas depois veio a pandemia. Viver um ano nos Açores, um ano em que a minha vida era completamente diferente. Eu gostava muito, mas daqui a cinco anos, se calhar eles já não me ligam nenhuma (risos).
Qual é o teu maior defeito?
Eu acho que não possuímos virtudes nem defeitos, apenas características. A minha maior virtude é, na verdade, o meu maior defeito. Tem que ver com a forma como as usas. Se calhar o facto de eu ser muito curiosa, voluntariosa e de ir sempre onde quero, ser extrovertida e ser criativa, é também o meu maior defeito. É o que faz com que eu também seja mais ansiosa, ocupe o lugar dos outros, e talvez não confie tanto nas ideias dos outros porque já estou ali. Portanto, esta é a minha teoria, e esta é a base Frenesim. É de que forma é que nós usamos as nossas características, porque não são defeitos nem qualidades. Aquilo que mais te irrita em ti, tem o outro lado da moeda, que é aquilo onde tu tens de mais precioso. Estar sempre a tentar melhorar os teus defeitos como se fosse uma coisa má ao invés de tentar enquadrá-los, e perceber de que forma é que eles são úteis e de que forma é que não são. Ser aparentemente muito extrovertida é muito bom para muita coisa, mas por outro lado, é uma queimadela constante, e pode ser um grande problema. Pronto, é esta a minha teoria. Tem que ver com a forma como os usas.
Palavra preferida?
Queres que eu te diga? Não pode aparecer, pois não? É fod**** (risos). Agora mais a sério, é a palavra “amarelo”. Amarelo é uma grande palavra. É tudo. É luz. Amarelo é tudo! Mas a minha cor favorita é vermelho, por acaso (risos). Eu sou bastante não coerente, eu faço questão de não ser coerente (risos).
Tens alguma data que te esteja gravada na memória?
A data em que os meus filhos nasceram… Tenho de dizer isso, não é? Até me fica mal (risos). Mas olha, tenho uma outra data, o dia em que entrei para a faculdade de Direito. Adorei estar na faculdade. Não sei o dia, mas sei que foi em 2006. Ter ido para esta faculdade em específico permitiu-me conhecer muita gente de terras pequenas que sonha em ser doutora, e eu vinha de uma escola de betos, e de uma família de pseudointelectuais de esquerda, o oposto, portanto, e foi muito giro para perceber outros mundos completamente diferentes, pessoas completamente diferentes de mim… Tunas e praxes, os meus pais, como é óbvio, são contra, e foi muito fixe para eu me relativizar no mundo, para perceber outras formas de viver. 2006 foi um ano de mudança de mim.
Para finalizar, diz-me três coisas que gostarias de fazer no futuro. Já nos disseste uma, tirar um ano com os teus filhos…
Gostava de ser grande (risos). Não sei se sentes que quando vias os teus pais, com a nossa idade, pareciam grandes. Eu sinto muitas vezes “onde é que estão os adultos para me ajudar a tomar estas decisões?” (risos). Eu gostava de ser “grande”, de ter a vida toda orientada… Preciso que alguém tome conta de mim (risos). Mas quando penso realmente nisto, não quero ser muito grande (risos). É difícil isto… sabes que nunca fui uma pessoa de pensar nos meus sonhos, ter essa visão lírica da vida… tens é que saber ter prazer e proveito do que existe e no que acontece. A vida é um acaso. Para mim, que sou ateia e bastante destravada, a vida é um acaso. É um acaso estarmos vivos ainda. É um acaso as pessoas morrerem. E, por acaso, conseguimos ser felizes. E a minha vida é assim. Acho que o truque é saber aproveitar o que existe. Não tanto o que a vida nos dá, mas saber surfar no que existe. Estou numa fase em que já sei que há coisas que não vou fazer na minha vida. Eu não estou a poupar dinheiro para viajar. Eu sei que não vou a sítios porque eu não estou a poupar dinheiro suficiente para, no espaço que me resta de viver, ir a esses sítios. A Mercedes Sosa tem uma frase numa música, a “Volver a los 17”, que diz “és velho o suficiente para fazer tudo o que quiseres, e és novo o suficiente para nada ser importante”. A melhor fase da vida, para mim foi aos 20 e tal, quando já tens dinheiro e pensas que podes fazer tudo, mas agora começo a olhar, e vejo que vou ter de escolher o que é que vou fazer, e aí sinto que ainda não sou adulta. Eu já estou a sentir isso, mas recuso-me a escolher, apesar da perceção de que há muita coisa que já não vou fazer. Acho que é a primeira sensação de que estou a ficar velha (risos), a primeira crise na idade.
28 de março de 2024