Ruis Vargas: “Eu faço design com Kung Fu”

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A Laika é uma agência de branding que nasceu com o propósito de representar um não-local, pela vontade de criar algo que pudesse estar em todo o lado, e é assim que tem sido a vida do seu fundador, Ruis Vargas: um pouco por todo o lado. No Porto encontrou aquela que é a sua 23.ª morada em 52 anos, depois de quase meio século de vida em São Paulo. Dos desenhos com dois anos, ao interesse pelos filmes de artes marciais que viraram hobbie e modo de trabalhar, das idas dos seus clientes ao divã, aos duros imprevistos que a vida lhe pregou, não percas a história do criador de bandas desenhadas icónicas que tem, na UPTEC Baixa, a sua 24.ª morada. E se a Laika pode estar em qualquer lugar, o Out Of Office de novembro só pode ser lido aqui.

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O que é a Laika?

Toda esta história começa em 2000. Eu trabalhava numa agência de comunicação, num setor que era o No Media, e eu queria trabalhar exclusivamente com design gráfico. Estava um pouco cansado do ritmo de agência, que era uma espécie de triturador de gente e não era focado em construir projetos de marca, mas sim responder a pedidos imediatos. Em 2000, as informações que nos chegavam é que havia muita gente a começar a fazer modelos de trabalho online, pessoas na Holanda, na Tailândia, nos Estados Unidos, eram os primeiros passos, porque a ligação à internet não era tão veloz como hoje. Então decidi experimentar trabalhar em rede, em locais diferentes, eu e o meu sócio originário, que se quis juntar a mim na empresa, e focarmo-nos em design gráfico. Quando pensamos no negócio, cada um de nós no seu escritório, chegamos ao nome “Laika”, que, de uma forma cruel – porque a cadelinha não chegou viva ao espaço –, representa um ser que está no espaço, num não-endereço, num não-local, então pensamos nela como representação da mobilidade espacial e um outro ponto de vista sobre um objeto ou ideia, uma forma diferente de pensar. Depois juntaram-se mais dois designers, um de programação, começamos a trabalhar em diferentes locais de São Paulo, e foi assim que se formou este conceito da Laika.

E como é que foram os primeiros tempos da Laika?

Em 2002, começamos a desenvolver sites, nós éramos muito fortes em Flash da Macromedia, um dos nossos sócios era muito bom com tecnologia, conseguia fazer sites muito comprimidos e muito velozes, que exploravam muito a animação, a trilha sonora e outras coisas. Paralelamente, nós desenvolvemos a parte de branding. No ano seguinte, e por causa dos projetos que foram sendo criados, um deles foi um dossier para a Prefeitura de São Paulo, que estava a concorrer como cidade candidata aos Jogos Olímpicos de 2012. Fizemos um projeto editorial muito grande, com mais de 600 páginas, numa operação muito exigente, que nos fez ver que, com a nossa divisão espacial, estávamos a perder eficiência, então fomos trabalhar para a nossa primeira sede, no Bairro de Perdizes, em São Paulo. Depois mudamo-nos para outro local, onde ficamos até 2021, altura em que viemos para o Porto.

Um regresso à essência original da Laika…

Sim, com a vinda para Portugal, como que reativamos a ideia de estar em todo o lado, porque apesar da nossa sede ser, agora, no Porto, continuamos a ter atividade e projetos no Brasil, no Rio de Janeiro, no Paraná, na Bahia, no Amapá, em São Paulo, para além dos projetos que temos em Portugal.

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O que é que a Laika faz?

Nós sempre quisemos aliar o design com a construção de narrativas, discurso, trabalhar com semiologia, e os primeiros projetos que realizamos permitiram-nos ir nesse caminho. Aliar branding, design e narrativas, porque não queríamos desenvolver a identidade das marcas só do ponto de vista gráfico, queríamos algo mais abrangente. Como sou formado em Letras, foi possível aliar todas essas áreas, trabalhar narrativas, a escrita como base para o design, e foi ali que nós começamos a desenvolver essa forma de pensar, sempre muito bem-humorada (risos). Muitos dos projetos levavam essa pitada de humor, muito mais com a linguagem escrita do que com a visual, mas a visual era uma tradução dessa linguagem escrita.

E qual é a vossa imagem de marca?

Gostamos de fazer trabalhos ricos em ilustração. O nosso portfólio tem muitas marcas criadas dentro dessa lógica, com elementos criados à mão. Naquela época, a novidade estava no início do impacto das tecnologias digitais e do maldito ClipArt (risos), e poucos tinham a preocupação ou vontade de fazer as coisas à mão. E essa é a nossa principal imagem de marca, que nos segue até hoje. Nós preparamos todo o projeto de linguagem, e as agências que trabalham para as marcas vão fazer a derivação de tudo o que nós delineamos em termos de identidade de marca. Nós damos os instrumentos, um brand book bem detalhado, para que a comunicação posterior obedeça a essa identidade.

“Como não somos daqui, procurávamos uma comunidade com a qual tivéssemos alguma afinidade, e encontrámos a UPTEC”

Nesse processo de criação de identidade das marcas, preferes ter total liberdade criativa ou inputs?

É igual, porque todos os clientes vão passar pelo divã.

Pelo divã?

Sim, pelo divã (risos). É uma ferramenta de análise discursiva, a análise da fala. Nós conduzimos a conversa com o cliente para perceber o que eles pretendem, de forma muito natural. Uma vez, fizemos isso num projeto com 20 pessoas, então, 20 entrevistas diferentes, e nessas entrevistas, nós vamos provocando (risos), e vamos analisando as respostas de uma forma mais racional. Tivemos outro caso com seis sócios, em que cinco estavam em acordo com o que queriam para a marca, mas o outro sócio não. Só que esse era um sócio que entendia do negócio, e os outros percebiam mais da lucratividade do mesmo. Então nós trazemos isso à tona, damos relevância para esses contrastes, e o trabalho inicial é entender o que o cliente pretende, entender as suas fraquezas e forças, e apontar um caminho, ele faz sempre parte do processo.

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Como é que Laika está hoje estruturada?

Eu sou o único elemento remanescente do início da Laika. Neste momento, temos três elementos fixos e dois transitórios, não digo que são fixos porque trabalham por projetos.

E como é que vieram parar à UPTEC?

A Cristiane, a minha sócia, fez o contacto com a UPTEC. Quando viemos para cá, entregamos o escritório no Brasil, e procurávamos uma sede, mas mais que uma sede, como não somos daqui, procurávamos uma comunidade com a qual tivéssemos alguma afinidade, e ela encontrou a UPTEC. Eu próprio já tinha pesquisado a UPTEC, acho que nem comentei isso com a Cristiane, mas foi ela que fez o contacto, nomeadamente com o André Forte, foi assim.

Que benefícios é que a UPTEC vos trouxe?

O principal é não estarmos isolados. Podemos comunicar com empresas muito diferentes, há muita mais troca de ideias. Estar aqui tem esse benefício. Fomos muito bem recebidos, é uma comunidade fantástica, gostamos muito de cá estar, e há um detalhe muito engraçado. Quando aqui chegamos, reparamos logo na cor da fachada do prédio, a parte interna que é voltada para o jardim, remeteu-nos para o nosso bairro, porque ficava perto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que tem um edifício muito semelhante, então houve logo esta familiaridade. A minha morada atual é a 23.ª morada da minha vida. Estou habituado à mudança (risos).

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Já cá estás há dois anos. Na tua opinião, o que é que a indústria criativa brasileira pode aprender com a portuguesa, e vice-versa?

Eu não penso muito nisso, porque a essência da Laika é mesmo essa, transitar entre as culturas. Fazemos parte de uma cultura ocidental, e há muito mais afinidades que divergência. A questão da regionalização já não se sente tanto, porque existe uma simultaneidade de comunicação, acontece tudo muito rápido, e o que acontece num ponto do mundo chega muito rapidamente a todo o lado. Então existe como que uma contaminação, já não sabemos de onde é que as coisas vêm. Embora a regionalização ainda exista, já não existe da mesma forma que há 20 anos.

“Estar no Porto é estar num ponto muito estratégico”

Qual é que foi a principal conquista até agora da Laika?

A adaptação. Porque o nosso modelo de negócio foi capaz de acompanhar as transformações dos tempos, e também utilizar a nossa base de conhecimento para lidar com isso, com as novidades da indústria ou supostas novidades, porque muitas vezes, as novidades surgem como nova roupagem de coisas antigas. Com 52 anos consigo distinguir isso, porque vi várias gerações de designers a surgir, e a fazer coisas que, no fundo, são repetições de algo que já tinha sido feito. É muito difícil conseguir criar algo que não tenha traços do passado, e esse é o verdadeiro desafio. Não acredito em novidades nem originalidades, porque são coisas muito raras, mas a forma como conseguimos combinar elementos é fundamental para criar narrativas com mais polifónicas, com várias camadas.

A vida da Laika conta com imensos prémios, mais de 25. É um destaque no vosso percurso?

É muito importante esse reconhecimento porque surge da pressão de nos colocarmos à prova, e ajuda a uma perceção mais internacionalizada da Laika. Demonstra que temos notoriedade fora de São Paulo, fora do Brasil, e que não estamos concentrados só nessas áreas.

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Próximos passos? Continuar a apostar em Portugal ou pensar em outros países?

O objetivo de termos vindo para Portugal é também podermos estar abertos ao resto do mundo. Faz-me lembrar uma loja de bicicletas que tinha/tem na Foz do Rio Douro, aqui no Porto, que se chamava “A última loja de bicicletas antes de Nova Iorque” (risos). Estar no Porto é estar num ponto muito estratégico. Somos um dos últimos escritórios de branding neste ponto do planeta. Estamos mais próximos da América do Sul, nomeadamente do Brasil, onde continuamos a ter imensos projetos e por causa dos quais eu viajo muitas vezes para lá, estamos mais próximos da América do Norte, é um aspeto muito positivo. Mas estar neste ponto também nos permite expandir para o lado oposto, o da Europa. O desafio agora é pensar como desenvolver branding, como nós desenvolvemos em português, mas em inglês, francês, italiano, romeno, alemão. Por que não? (risos).

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Desde cedo que se lembra de desenhar e de gostar de contar histórias. O tempo provou que o talento que demonstrava em criança foi bem aplicado ao longo dos 35 anos de carreira, mas o mesmo tempo mostrou que, num curto período e sem que nada o faça prever, tudo pode mudar rapidamente. Com uma vontade gigante de viver a vida, Ruis Vargas procura passar um bom exemplo para os seus filhos, e deixar uma marca kung Fu no mundo.

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Como foram os teus primeiros anos de vida?

Tenho uma memória fotográfica muito poderosa, principalmente no início, de quando era bebé. Eu morava numa casa, num bairro na periferia de São Paulo, que era quase área rural. Em 1971, São Paulo ainda não era uma grande metrópole, e tenho uma memória de estar em casa, sentado numa cadeira parecida a esta, mas de napa, vermelha, o meu pai a ver televisão, a minha mãe no quintal a estender roupa, e eu, bebé, a desenhar um painel de automóvel (risos). Devia ter uns dois anos, e lembro-me de desenhar, foi algo que sempre esteve presente em mim. Isso e contar histórias, sempre gostei muito de contar histórias, algo que está relacionado com a banda desenhada. A minha mãe fez-me ler muito. Ela só estudou até ao primeiro ciclo, mas depois dos 50 anos, acabou o ensino médio. Ela dava muita importância à leitura porque não teve oportunidade de estudar muito, então a minha infância foi sempre à volta de livros e de banda desenhada, algo que faço coleção até hoje, tenho muitas bandas desenhadas em casa, algumas raras.

E quando é que passaste da leitura de banda desenhada para a construção de banda desenhada?

Ali por volta dos 10 anos. No início construía narrativas, escrevia banda desenhada, obviamente inspirada no que eu lia, mas foi aí o início. Em 1989, saí de São Paulo e fui para o Recife, em Pernambuco, e foi aí que comecei a fazer strip comic, tirinhas, e tive a oportunidade de estagiar num jornal cultural, não ganhar nada, mas aprender a profissão, tinha 17 anos. Comecei a fazer ilustrações, e fiz uma banda desenhada para esse jornal, numa ideia que surgiu juntamente com a editora que era um cicerone, um guia turístico de Recife. E o personagem tinha um boné, e ele dizia “vou pôr o meu boné”, e a editora Goreti, que foi a minha madrinha na profissão, perguntou “pôr o quê? É botar o boné!”, e eu disse-lhe “Botar? Quem bota é galinha” (risos). Foi muito engraçado sentir logo esse choque cultural porque em São Paulo, dizia-se “pôr” o boné, mas no Recife dizia-se “botar” o boné. Então foi ali que eu comecei a entender de artes gráficas, simultaneamente. Eu desenvolvia os quadrinhos, a banda desenhada, e começava a entrar na profissão, a perceber o processo de impressão, fazer layouts à mão, fazer artes finais.

E mais tarde voltaste à tua São Paulo…

Sim. Com o passar dos anos fiz pequenas publicações em fanzines que se interessavam por banda desenhada, principalmente pelas tiras. Em 1992, eu comecei a publicar no jornal da USP – Jornal da Universidade de São Paulo, que era um tabloide incrível. O reitor, na época, contratou uma equipa que tinha vindo do Jornal da Tarde, que era um jornal revolucionário, em termos de diagramação. Eles revolucionaram o jornalismo, os conceitos de página, não era aquele monte de blocos, era um bocado de arte unida com o jornalismo. A certa altura, a editora do jornal, Maria Lúcia Carneiro, disse que ia publicar as minhas tiras. Posteriormente, comecei a publicar em outros sítios. Tabloides culturais em São Paulo, para a revista do SESC São Paulo, que já era uma revista colorida, sempre tiras de humor, mas não publiquei durante muito tempo, porque parei com a banda desenhada quando comecei o escritório, em 2002.

Tiveste de escolher?

Sim, porque ou me dedicava à Laika ou fazia banda desenhada. Seguiu-se um período em que fiquei oito anos sem desenhar banda desenhada.

E quando é que voltaste?

Em 2010. Fui publicado numa revista sobre o meio ambiente, comecei a publicar num jornal de grande circulação em Ribeirão Preto, uma cidade grande do interior de São Paulo. Para além das tiras de banda desenhada, comecei a fazer graphic novel, um tipo de banda desenhada publicada no formato de livro, com histórias maiores, a partir de 2015, mas estas não são tão bem-humoradas, são até um pouco tensas (risos). O André [Forte] chegou a ler e a achar “tenso”! (risos). Tenho até um episódio curioso. Durante muitos anos, as minhas tiras foram compradas por editoras que produzem livros escolares. Grandes editoras que produzem os livros do ensino público, especificamente no estado de São Paulo, o maior e mais rico estado brasileiro. Tive até um episódio com o filho de uma conhecida que se surpreendeu quando descobriu que eu era o autor das tiras do Bobo da Corte, porque estava nos livros que ele usava para os estudos.

“Às vezes sinto falta do barulho de São Paulo”

E o que é te levou a mudar para cá para o Porto?

Em primeiro lugar, a saúde. Eu tenho uma amiga hispano-brasileira, ela mora aqui em Vila Nova de Gaia, reformou-se e veio para cá, e falava muito da cidade, do Porto, que era maravilhoso (risos). Isto era em 2010, 2011, então sempre fiquei com essa imagem positiva na cabeça. Em 2016, eu e a minha mulher começamos a pensar em sair do Brasil. “Temos três filhos, temos a possibilidade de cidadania italiana pelo lado do meu pai, ou a cidadania espanhola pelo lado da minha mãe. Quais eram as alternativas?”. E aí pensamos “porque não Portugal, onde está a minha amiga Núria?”. Pensamos no que seria melhor para os nossos filhos, que não teriam de aprender uma nova língua, que a adaptação seria mais simples. Também queríamos uma cidade menor, porque vínhamos de São Paulo, onde só o município tem mais 20% de pessoas que Portugal inteiro, era um caos. É uma cidade muito poluída, não estávamos bem de saúde, eu sou asmático, então sofria com isso.

Do que é que tens mais saudades do Brasil?

Sente-se falta de encontrar os amigos, de estar com a família, mas podemos viajar e matar saudades. Às vezes sinto falta do barulho de São Paulo. Aquela agitação fazia parte do meu quotidiano, mas não voltaria para lá porque gosto mais do silêncio. Às vezes estou no apartamento, e não ouvimos os vizinhos, ouvimos só o vento, faz muito vento onde vivemos, parece um filme de terror (risos). Mas é um silêncio muito bom. No Porto, o ritmo é mais humano, enquanto em São Paulo, é tudo muito acelerado. É uma cidade cansativa. Agora, o que tem lá e aqui não é mamão formosa a um preço mais baixo (risos). Eu gosto muito de mamão formosa, de banana-prata, disso sinto falta (risos).

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Então não fazes planos de regressar?

Eu não faço planos desses. Não sei se vou ficar no Porto até aos meus 90 anos ou se, no próximo ano, vou mudar-me para Singapura.

Nos tempos livres, o que gostas de fazer?

Há algumas coisas que gosto de fazer. Gosto de tocar pandeiro, toco desde os meus tempos de juventude. Não sou profissional, mas já pratico há muito tempo, é bom para os braços também (risos). Continuo a fazer a banda desenhada. Não é um hobbie, é mais um projeto paralelo que continuo a ter. No fim de semana, eu escrevo as tiras, desenho-as, e publico no meu Instagram, onde tenho algumas pessoas que me acompanham. Tenho umas três ideias para Graphic Novels na cabeça que ainda não pus no papel, está só está na minha cabeça ainda, porque o meu processo é maior. Formulo a história na minha cabeça, conto-a para mim, e só aí começo a desenvolvê-lo. No meu tempo livre, estou com os meus filhos, em família, saímos para comer. Gosto bastante de caminhar da zona da Ribeira até ao mar, até Matosinhos. É uma cidade muito convidativa. Também gosto de fazer a manutenção do nosso apartamento.

E onde é que entram as artes marciais na tua vida?

Eu pratico, mas desde que vim para cá, tive de parar. Pratico Kung-Fu estilo Louva-a-Deus. Kung fu é muito diferente do Karaté do Japão, onde tens as artes marciais mais definidas, com mais protocolos, enquanto as artes marciais na China são formadas por clãs, são muitos padrões diferentes. Na realidade, nem se chama Kung Fu, chama-se Wushu. Kung Fu é por causa do Bruce Lee, e Kung Fu é um conceito de trabalhar duro, de fazer bem feito. Ao fazer design eu faço com Kung Fu. Eu posso fazer design com Kung Fu. Eu faço de forma dedicada, com trabalho árduo, é uma ideia que pode ser aplicar em tudo.

“Quero cuidar da saúde para viver o máximo possível”

E como é que surgiu este gosto para as artes marciais?

Surgiu por várias questões, mas a principal era por ser uma pessoa muito stressada. Cresci em sítios muito tensos, e acabei por me tornar uma pessoa stressada, que trabalhava numa profissão stressante, com chefes stressantes, prazos stressantes, e para um asmático, isso é a pior coisa. Desde pequeno, era apaixonado pelos filmes de Kung Fu, clássicos como a Câmara 36, o Templo Shaolin, e davam na televisão nos anos 70, e eu era apaixonado por eles, então as artes marciais sempre me ficaram na cabeça. Quando era mais novo joguei muito futsal, muito futebol de campo, cheguei a competir em futebol amador pela associação de publicitários de São Paulo, onde fomos vice-campeões e terceiros classificados, jogava a defesa direito. Na faculdade eu era da atlética, fiz parte da Diretoria da Atlética, e na minha faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da USP, a bandeira tem um gato, que é o símbolo da atlética que foi desenhado por mim nos anos 90 e até hoje é usado (risos). Sempre fui muito ligado à prática desportiva. Apesar do meu tamanho, eu jogava sempre, joguei muito vólei, não-competitivo, mas assim num nível melhor. Futebol cheguei a fazer algumas competições, mas quando fiz 35, 36 anos, eu parti a mão a jogar e pensei “acho que não tenho mais idade”… e podia ter partido a cabeça! Estava a correr pela lateral do campo, levei um encosto que me projetou e eu caí com a mão próximo ao muro. Quando estava no hospital, conheci um rapaz que também estava com uma lesão relacionada com o futebol, e que me contou que na semana anterior, um amigo dele tinha morrido exatamente da mesma forma que eu caí, só que em vez de bater com a mão no muro, foi com a cabeça… Teve um traumatismo craniano e não resistiu… Foi aí que pensei “tenho um filho pequeno, vou arranjar um desporto menos violento…”, então fui para as artes marciais (risos). Ajudou-me a aprender a respirar melhor, a ter mais controlo e fluidez do meu corpo.

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O que é que é mais indispensável para ti na vida?

A família… os meus filhos, a minha esposa. Acho que isso é indispensável para mim. É o que construímos. Temos os outros familiares, mas o dia-a-dia é vivido com eles. É um suporte muito grande, é uma família grande, com três filhos, é uma família barulhenta (risos). Acho que é fundamental tê-los ao meu lado, até porque, no processo de vinda para Portugal, fiquei afastado deles durante um ano. Fiquei um ano aqui sozinho, no meio de um processo complicado com vários problemas burocráticos. Mas senti o apoio deles à distância, porque sentimos que só estamos bem se todos estiverem bem.

“São duas datas tão próximas e tão marcantes por dois motivos tão distintos”

Disseste atrás que não fazes grande planos pessoais. Apesar disso, tens alguma ideia de onde te vês daqui a cinco anos?

Não. Eu ajudo os meus clientes a fazer isso, mas eu não faço isso comigo, porque eu fiquei viúvo com 37 anos… O primeiro amor da minha vida, projetávamos muito o futuro… A Silvia era extremamente saudável, quase nunca tinha uma gripe, nunca tinha nada. Eu podia ficar engripado, mas ela nunca tinha nada, nunca, nunca. Até que desenvolveu uma leucemia… absolutamente aleatório, à conta de um vírus, Vírus Linfotrópico Da Célula Humana, HTLV, e o desenvolvimento do vírus foi muito raro, acontece num número irrisório de pessoas em todo o mundo…. Em menos seis meses, tudo acabou, tudo mudou… E fiquei com o meu filho mais velho… Até que conheci a minha esposa, que já tinha dois filhos. Foi um recomeço. Ali aprendi que não vale a pena pensar muito no futuro, para além do básico, claro… educar os filhos, prepará-los para a vida…

Uma lição bastante custosa…

Sem dúvida… pessoalmente, quero cuidar da saúde para viver o máximo possível. Não sei onde vou estar a morar daqui a cinco anos, mas quero ter saúde para continuar a criar. Eu sou uma mente meio que ininterrupta (risos). Às vezes acordo a ter ideias, então para as poder fazer, tenho de ter saúde. Há pouco tempo voltei a fazer uma coisa que não gosto nada, que é ir ao ginásio… Como eu não gostava, comecei a praticar artes marciais, mas depois de trabalhar seis, sete horas, e com o ombro a começar a queixar-se… se continuar assim, daqui a dez anos não vou conseguir desenhar, então preciso de cuidar da minha saúde. Agora no trabalho, faço projeções porque falamos de uma empresa. Daqui a cinco anos, não sei o tamanho que a Laika vai ter, mas espero desenvolver aqui projetos tão inspiradores como aqueles que fizemos no Brasil, algo que já começa a acontecer. Espero poder fazer uma simbiose cultural, poder acrescentar muita coisa a Portugal.

Qual é que achas que é a maior emergência do momento?

Pensar nisto até causa depressão, porque vemos tudo o que está a acontecer no mundo… A questão ambiental é muito complexa, as guerras que se sucedem levam a mais investimento em armamento ao invés de apostar no bem-estar da vida das pessoas que vivem abaixo do limiar da miséria. É uma grande estupidez nossa… Mas eu acho que é possível criar diálogos, derrubar fronteiras, derrubar preconceitos. Eu tento não ser preconceituoso.

Qual é a tua maior virtude e o teu maior defeito?

Não sei se será uma virtude, mas sou uma pessoa muito sistemática. Se combinei alguma coisa com alguém, e tenho um prazo de entrega até x hora, sou inflexível. Só sou mais flexível se houver algo que não esteja sob o meu controlo, porque sei bem que não posso controlar tudo. Tento ser sempre honesto, cumprir com tudo de forma correta. Até a atravessar a rua, a minha esposa e os meus filhos até se riem quando atravesso fora da passadeira (risos). Acho que foi uma característica que herdei da minha mãe.

Uma palavra preferida?

Há uma palavra que eu gosto bastante, de uma música do Candeia interpretada pela cantora Clara Nunes, chamada Sindorere. É uma palavra que se desdobra na cultura afro-brasileira. Um dos significados do seu uso pode ser “vamos fazer com alegria”.

Tens alguma data que te esteja gravada na tua memória?

Tenho uma data muito curiosa. Creio que é 9 de agosto de 2008, possivelmente. Como a minha primeira mulher estava doente, ela já estava no hospital, foi a última vez que a vi, depois ela ficou isolada, não pude acompanhá-la, mas antes ela disse “Tu tens de casar outra vez! Tens de arranjar alguém! És muito jovem, tens de arranjar alguém, não vais ficar sozinho!”. Eu dizia para ela parar porque não estava a dizer coisa com coisa, e ela insistia que eu tinha de arranjar alguém. Depois conheci a minha atual esposa, e ela até diz em jeito de brincadeira que a Silvia nos empurrou, porque a probabilidade de nos conhecermos era mesmo muito reduzida. Então guardo também a data em que conheci a Cristiane, a minha atual esposa. Ela nunca se lembra da data em que nós nos conhecemos, mas eu lembro (risos). 22 de setembro de 2008, um pouquinho de tempo depois da Sílvia ter falecido. Foi a primeira vez que eu falei com a Cris e a última vez que eu falei com a Silvia. São duas datas tão próximas e tão marcantes por dois motivos tão distintos. Esta série de acontecimentos também conectou os meus filhos. Tenho um biológico, tenho os dois da Cris, e podia ter mais um da Silvia e outro da Cris, mas infelizmente, perdemos esses bebés. Hoje podia ter cinco filhos, muitos filhos (risos).

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Para finalizar, diz-me três coisas que gostarias de fazer na tua vida.

Tanta coisa… Tenho algumas histórias para passar para o papel. A primeira é a continuação de Doces bárbaros, graphic novel do Bobo da Corte, que se originou nos jornais Tribuna Impressa e A Cidade do interior de São Paulo, que saía ao domingo, uma “tira” dupla, mas como esse jornal acabou, faltavam-me umas quatro cenas para terminar a história toda. Então as pessoas que liam queriam saber como é que acabava a história! Nessa história, deixei alguns ganchos para uma próxima história, e tenho essa história na cabeça! Ela já está aqui, consolidada na minha cabeça, e sei que tenho de a fazer. Tenho de me sentar, pensar e desenhar essa história, é uma das coisas que eu tenho de fazer. Se eu morrer, alguém vai terminar essa história, eu vou possuir o corpo de alguém, e essa pessoa vai desenhar por mim (risos)!

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E outras duas?

Quero fazer com que os meus filhos sejam autónomos, e que saibam lidar com a frustração. A vida é, basicamente, frustração. Eu queria ter 1,90m! Não ser narigudo, não ser tão branquela (risos)! Mas não consigo, e temos de lidar com isso. E um dos meus sonhos era tocar bateria, mas é muito complicado! Coordenar tudo, braços, pernas, é muito complicado, então prefiro ficar-me pelo pandeiro (risos). Mas no fundo é isto, quero encaminhar os meus filhos para um caminho seguro, e que tenham ferramentas que lhes sirvam de porto-seguro.

30 de novembro de 2023

A exposição “Como produzir stripcomic e graphic novel sem perder os amigos” de Ruis Vargas pode ser visitada na UPTEC Baixa, até 25 de janeiro de 2024. Para agendar visita, contacte xpo@uptec.up.pt, com a data que pretende.

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