Ivanoel Rodrigues: “O meu ganha-pão são as minhas experiências”

O Out of Office de julho destaca Ivanoel Rodrigues, de 30 anos, fundador e CEO da Hortee, um projeto que começou em jeito de anedota. O Web Summit foi o ponto de encontro de três pessoas que arrancaram com a solução e que, atualmente, leva produtos frescos do produtor ao consumidor, de forma sustentável e digital. Da leitura às caminhadas, da música aos mirtilos, e do sonho de criança militar ao empreendedor “chato”, percorre a história de vida que começou em Sever do Vouga e está agora no Porto, e do projeto que é, e pretende, ser um pouco de todo o mundo.

O que é a Hortee?

Na Hortee providenciamos uma experiência de compra de produtos locais. Isto é feito através de uma plataforma online e através de uma rede de mercados pop-up e de pontos de entrega, em que o consumidor compra diretamente ao produtor através daquilo a que chamamos community enabler, que é aquilo que está no meio. O consumidor compra diretamente ao produtor e define que quer receber os seus produtos num dos pontos de entrega ou mercado pop-up, definidos por estes community enablers. O que nós tentamos fazer é encurtar e otimizar a cadeia agroalimentar dos frescos, principalmente, para as pessoas só irem lá recolher os produtos, porque já fizeram as compras online, já está tudo feito, tudo definido e já está tudo pago.

Então se eu quiser fazer uma sopa com produtos e legumes locais, vou à plataforma da Hortee, e lá consigo encontrar vários produtores locais. Depois, compro e pago, escolho um dos sítios onde esse produtor pode estar a distribuir num determinado dia, e levanto a minha encomenda? É assim que funciona?

Exatamente. Isso é o que está, atualmente, mais avançado. Nós já estamos a avançar com pontos de entrega/recolha, porque um entrega e o outro recolhe (risos)! Se um produtor aceitar entregar na zona do Porto, numa determinada morada, isso vai permitir que restaurantes possam fazer compras online de produtos frescos e vai, também, permitir a toda uma panóplia de players diferentes fazerem compras por não terem possibilidade de ser deslocar a um ponto de entrega ou mercado pop-up.

E estes pontos de entrega já estão ativos?

Os pontos de entrega já estão ativos, sim. Não estão tão ativos como os mercados pop-up, mas já estão ativos, aliás, os mercados pop-up já são um ponto de entrega! Nós, agora, estamos aqui no Porto e em Aveiro, e muitas vezes, o que acontece é que as pessoas compraram online, disseram que iam a um mercado, mas não conseguiram. Podem, então, comunicar com o produtor e dizer “olha, deixa aí, por favor. Tipo, neste sítio”, ou seja, estamos a deixar que, para além do mercado pop-up, exista um ponto extra para entregas. Em Aveiro, por exemplo, é junto ao Segurança no PCI, basicamente.

Neste momento, quantos produtores é que já têm a trabalhar na plataforma?

Neste momento, sensivelmente, entre stand by e ativos, são 50, mas podemos ter mais. Estamos a fazer uma estratégia de ir crescendo de forma sustentável. Com os mercados pop-up fomos compreendendo como é que as cadeias curtas cidades-campos se podem formar e reproduzir. Com essa experiência, se adicionarmos pontos de entrega definidos pelos produtores e consumidores, num formato de livre Marketplace, qualquer pessoa passa a poder contactar diretamente com produtores à sua volta, com ou sem mercados pop-up. Chamamos internamente de Hortee Connect à rede de enablers, onde acontecem os mercados pop-up, e de Hortee Marketplace à rede de produtores e consumidores ligados, embora funcionem interconectados. Com o lançamento do Hortee Marketplace em poucas semanas, todo o país passa a poder conectar-se diretamente, com a maior das facilidades em agendar as entregas, com ou sem mercados pop-up a funcionarem.

A zona de entrega são eles que definem?

Sim, eles definem mesmo a zona de entrega entre eles! E esta situação fica ainda mais facilitada porque o produtor que já tenha recebido o pagamento, o risco de ele ir fazer uma entrega e a pessoa não estar lá é mais diminuto, exceto, claro, se for pagamento em numerário, que é feito no momento da entrega. Se for feito pagamento online, é a priori, e por ser a priori diminui esse risco e faz completamente a diferença.

E o que é que a Hortee ganha com todo este processo? Uma percentagem destes produtores?

Sim, exatamente. O modelo de monetização é variado, havendo empresas e cidades que têm interesse em propor o Hortee Connect de forma gratuita para os colaboradores. Outros apenas querem promover para os seus munícipes e colaboradores, não querendo suportar o custo das comissões. Para ser adaptável a qualquer município e empresa, um modelo híbrido de Marketplace e SaaS é utilizado.

“A origem parece uma piada do género ‘entrou este, este e este num bar’”

Como e quando é que surge este projeto?

Na Web Summit em 2016, e a origem parece uma piada do género “entrou este, este, e este num bar” (risos). Ora, na Web Summit de 2016, que foi a primeira vez que houve Web Summit aqui em Portugal, eu fui voluntário lá, e, por múltiplas razões, acabei num hostel em Moscavide, com mais três “gajos”: um era um alemão que estava na Alemanha, outro era um americano da Jordânia, e o outro era um português, que, por acaso, era aqui do Porto…

Portanto, um americano, um alemão e dois portugueses entram num hostel

Exatamente (risos)! Então, como tivemos uma reputação bastante boa no voluntariado, oferecem-nos umas pulseiras para a zona VIP, uma cena muito fora… Nós ficámos todos WOW, WOW! Vamos para a zona VIP, estamos cheios de pica, e surge a questão: “Man, nós estamos aqui, no Web Summit, terra das oportunidades, vamos ter de arranjar uma ideia de negócios, já aqui!” Não arranjámos uma ideia de negócios, mas arranjámos uma pergunta muito importante, que foi, e lembro-me perfeitamente, “Qual é a área que mais influência vai ter na sobrevivência da Humanidade no futuro?”. E a resposta foi, apenas e unicamente “Comida”. Acaba o Web Summit, e durante esse ano, inscrevi-me numa cadeira de Marketing – sou de Finanças, mas inscrevo-me nessa cadeira especificamente para ter um professor –, para desenvolver qualquer ideia associada a este tema.

E de onde veio essa ideia?

Quando estava em Sever do Vouga, aquilo é a ‘capital nacional do mirtilo’, eu apanhava muitos quando era miúdo, como um part-time de verão, e percebia a diferença do que eu recebia, do que o produtor recebia e do quanto o mirtilo estava à venda. O produtor recebia 2,5€ o kg e cá fora, estava tipo a 20€ o kg para o cliente! E eu: “OK, há aqui qualquer coisa que não bate certo, porque estes mirtilos que eu acabei de apanhar estão aqui e são vendidos a 500 metros! E aumenta quatro vezes o preço!” E aquilo ficou-me sempre na cabeça. Depois, quando eu saí de Sever e fui para Aveiro, percebi que a comida não era a mesma, o sabor não era igual, o tomate não sabia mesmo a tomate. Para mim, o significado do Verão é tomate, coração-de-boi, cortas a meio, metes azeite, sal e comes. É só isto… e, se o tomate for bom, é TOP! Se o tomate souber a água, não sabe a nada, sabe a azeite e sal só. Quando fui para uma cidade como Aveiro percebi que a comida é completamente diferente e pensei “OK, há aqui qualquer coisa…”, e estas pequenas peças foram sendo juntas.

E qual foi o passo seguinte?

Depois do Web Summit 2016, desenvolvi uma ideia – chamei-lhe “Flood”, na altura -, e daí surgiu o nome “Fhlud”, porque é o acrónimo de “Local Food”, mas que tivesse um “ponto com”, e desenvolvi a ideia. No ano seguinte, fomos para o Web Summit, ficámos os mesmos três, mas trocou-se o português por um italiano desta vez… ficámos os mesmos três, do ano anterior, no mesmo quarto, no mesmo hostel, e quando cheguei disse “malta, lembram-se da ideia do ano passado? Opa, eu desenvolvi isto. Está aqui”. Sentámo-nos, e foi, tipo, brainstorming atrás de brainstorming, durante quatro ou cinco dias, e, na altura, levei um fato para o Web Summit e disse “nós já temos uma ideia. Estamos no Web Summit, é só procurar investidores!” Resultado: não encontrámos investidores, mas encontrámos um senhor da Associação Nacional de Inovação que nos disse: “olhem, gosto da vossa ideia. A melhor coisa que vocês têm a fazer é registarem a empresa senão a ideia vai morrer. Como são de várias geografias, registem a empresa em Portugal, e sigam com a ideia, promovendo Portugal”.

E foi isso que fizeram?

Sim. Eu acho que este é o único sítio onde é possível fazer no mesmo dia, mas no dia seguinte, estavam quatro tipos, em que um não era sequer da União Europeia, a registar uma empresa! Registámos a empresa, na altura chamava-se “Dragon Mission”, que é daqueles nomes super random (risos), e depois passou para “Fhlud”! Depois fomos para casa, durante dois, três meses desenvolvemos online, e passados outros tantos meses, surgiu a questão: “Um de nós tem de se mudar. Precisamos de fazer isto presencial.” Percebemos que um dos nossos sócios não estava a trabalhar muito, então éramos só dois, basicamente, eu e o sócio alemão…

E o outro italiano, já não estava…

Ele não registou a empresa.

Então foste tu, o americano e o alemão.

Sim. Fomos os três. Um deles estava muito ocupado e surgiu-lhe umas questões de saúde na família e acabou por ficar out praticamente o tempo todo. Entretanto, o alemão mudou-se para Portugal e no espaço de um ano, eu despedi-me, ele despediu-se, e fomos arranjar dinheiro à família e amigos e para trabalharmos durante esse período. Começámos numa ideia que era para fazer a “Fhlud”, acabámos numa empresa de impressão 3D – long story, não vou por aí -, mas foi a primeira tentativa. Basicamente, falhámos.

O processo atingiu aí um rumo inesperado então…

Sim, saí, acabou o dinheiro, acabou a empresa, não avançou. Voltei para front-end e daí «decidi que queria ir para vendas. Andei ali no recovery, surgiu a Startup Voucher, inscrevemo-nos, mas não fomos aceites. Reinscrevemo-nos, não fomos aceites. Voltamos a inscrever e fomos aceites. À terceira foi de vez! Isso marca um bocadinho o nosso percurso até agora, que foi de “bate, bate, bate, bate até que fura!” Eu acredito que quem não desiste não consegue perder, estás a ver? Se não desistes, não perdes. Surgiu então a Startup Voucher, avançámos por aí em plena pandemia e a ideia era um bocadinho diferente, mas era na mesma encurtar a cadeira agroalimentar, digitalizar e otimizar. Avançámos de várias formas, também foi ali uma roda-viva e, pronto, acabámos aqui: Hortee, mercados pop-up, pontos de entrega, experiência.

Disseste que estavam dois, tu e o teu colega alemão, mas, entretanto, pelo que percebi, ele saiu. Não é?

Sim. Como acabou o dinheiro, nós decidimos que cada um tinha de seguir a sua vida. “Foi muito giro, aprendemos imenso, mas isto não vai dar em nada! Temos de saber meter um shutdown e seguir.” É aquela história de insucesso “tens de falhar não sei quantas startups”, e falhámos logo uma.

E o Startup Voucher já é de 2020?

É de 2020, sim. De setembro de 2020 a setembro de 2021.

E foi nessa altura que vocês vieram para a UPTEC, ou não?

Foi nessa altura, porque ganhámos o Climate LaunchPad em 2021 e viemos para a UPTEC. Entretanto, a nossa ligação cá permitiu-nos também fazer coisas com o Município do Porto, porque estávamos mais ligados à cidade. Surgiram daí várias coisas e, acabei por me mudar para o Norte também por causa disso.

E então, neste momento, como está a Hortee?

A Hortee continua a chamar-se Fhlud Technology, e está como empresa registada. Foi registada em março de 2022, com três sócios: um dos sócios iniciais, que era a Karyna, foi também quem fez o Startup Voucher comigo, e depois com um produtor agrícola, que é o António Luzio. Agora estou eu, o Cláudio, a Josane e o Michel a tempo inteiro. Além de nós os quatro, temos o António Luzio e a Karyna como sócio fundadores, ele como especialista agroalimentar (e agricultor biológico) e ela como especialista em saúde e dream keeper da equipa. Temos, assim, todas as funções necessárias atualmente, expertise necessária e gente encarregada de evitar que se comece numa Fhlud e acabe numa startup de impressão 3D (risos).

E estão em diferentes cidades?

Sim, uma está em Caminha, literalmente virada para Espanha, outro em Sever de Vouga, e outro é de Anadia. Temos um também em Matosinhos e eu estou em Vila do Conde (risos). A equipa é em full remote mas, normalmente, tentamos estar juntos uma ou duas vezes por mês. Os mercados pop-up têm essa vantagem: nós temos de ir lá, e como tal, juntamo-nos todos (risos).

“Para estares no sítio certo, à hora certa, tens de estar em muitos sítios não certos, a horas erradas”

Quais são os momentos-chave da Hortee? Aqueles momentos que consideras que foram mesmo importantes?

Momentos-chaves da Horte… acho que há vários momentos-chave. Um deles foi, efetivamente, voltarmos para o mesmo sítio, para o mesmo hostel, que fez com que a ideia avançasse e registássemos a empresa. Efetivamente, aquele representante da ANI tinha razão, se nós não registássemos a empresa, não nos obrigávamos a avançar com a ideia, morria ali. Essa era a única coisa que tinha razão, esqueceu-se de dizer muitas coisas lá pelo meio (risos), não era propriamente uma docilidade registar uma empresa. O segundo momento-chave diria que foi o Startup Voucher, e que foi, basicamente, daquelas coisas acidentais, porque foi na terceira tentativa que nós nos inscrevermos de forma completamente inesperada.

Porquê? O que é que aconteceu?

Então, eu esqueci-me completamente da data-limite da cut-off, fui a correr para o computador registar exatamente o mesmo texto, exatamente a mesma coisa e registei um segundo depois da cut-off fechar e abrir a seguinte. Portanto, na última lógica de métricas, que era à data em que se inscreveram não havia ninguém que estivesse à nossa frente. Passaram-se seis meses, eu esqueci-me completamente daquilo, mas depois, eles aceitaram!

E quando recebeste isso…

Quando recebi, foi interessante, porque eu tinha acabado de ser promovido no trabalho. Ia começar a fazer vendas e finanças na mesma empresa, porque eu tinha dito para mim: “Eu quero trabalhar na parte de finanças aqui, meio, meio” e eles: “OK, tranquilo, bota, siga viagem”; isto num dia, no seguinte eu digo: “Olha, tenho de me ir embora” (risos).

Mas sempre soubeste que a partir do momento em que tivesses financiamento, em que tivesses oportunidade de te dedicares à Hortee, que era esse o teu porto?

Eu sou um risk taker, puro e duro! Desde sempre fui, e acredito que faz parte de mim assumir riscos. Avalio muito os riscos, percebendo se é um “Go or no go”. Se é “No go”, é porque há muito risco e muita problemática, sempre na perspetiva de “Qual é o pior outcome possível?”. Se o pior outcome possível não é algo que aceite, não vou, é um “No go”; se o pior outcome possível é algo que eu aceite, que não me desvia do plano, vou e é “Go”! Ou seja, eu assumo o risco, e assumi as consequências. Esse foi um dos momentos.

O que aconteceu a seguir?

O terceiro momento-chave foi ter ido a uma feira agrícola, à procura de uma pessoa que toda a gente me tinha recomendado. “Fala com este tipo que ele está ligado a essas coisas”, que era o Luzio. Fui lá e encontrei-o, e deu-me ideias muito diferentes, deu-me um input muito interessante no início. Outro momento importante, foi estar no Web Summit. Em 2021 ligam-me da Startup Portugal e perguntam: “mas olha, tu tens Minimum Viable Product (MVP)?” e eu: “tenho” – não tinha. Arranjámos um MVP em três semanas, fomos para lá, e houve um momento em que fomos entrevistados por uma pessoa que eu não conhecia de lado nenhum, mas que, eventualmente, se tornou num dos nossos primeiros investidores, um ano e meio depois. Basicamente, era uma aceleradora da Estónia que tinha lá estado naquele dia a entrevistar projetos de clean tech. Entrevistou-nos e surgiu aí a relação. Um ano e meio depois surgiu o investimento. E esse foi também um momento importante! O outro foi estar aqui na UPTEC, numa apresentação de circularidade, que foi o momento em que se iniciou a nossa relação com a Câmara Municipal do Porto. É estar no sítio certo à hora certa, acho que foi sempre o que nos fez estar!

Sim, mas procuraste estar no sítio certo.

Sim, procurar estar no sítio certo à hora certa, mas para estares no sítio certo à hora certa tens de estar em muitos sítios não certos a horas erradas. Tens de estar em muitos sítios, a levar muitos nãos.

E qual foi o melhor momento até agora?

Um momento em que realmente me senti muito feliz foi muito recentemente. Foi a primeira vez em três anos que tivemos a equipa toda reunida! Num ano e tal de empresa registada, nós nunca tínhamos tido toda a equipa junta, porque falhava sempre uma pessoa! Até partilhei com a Karyna: “Lembras-te de, há um ano, estar sozinho e agora está aqui esta gente toda da equipa…”, senti-me muito feliz e feliz por ter uma equipa! É algo que é muito interessante; saber o que é não ter equipa e, depois, ter uma equipa, confiar nela e saber que todos têm mais experiência – eu sou a pessoa mais nova – e mais responsabilidade… foi um momento muito feliz!

E o pior?

Foi no final do Startup Voucher. O acordo com a Karyna, desde o início do Startup Voucher, foi de ela ser um elemento ativo e iniciar o processo da Fhlud, em regime full-time durante o programa, assumindo uma posição mais passiva e estratégica no final do mesmo. Paralelamente a isso, tínhamos arranjado mais dois elementos para a equipa de programação. Por várias razões, no dia 1 de setembro de 2021, de uma equipa de quatro passei a ser eu sozinho! Aí, eu reequacionei se devia continuar ou não: decidi continuar e, depois, lentamente, fomos arranjando equipa novamente. Mas o dia 2 de setembro de 2021… quando ficas sem equipa, e durante oito, nove meses, não tinha financiamento, não tinha salário. Apesar de ter planeado para estes momentos, foi de mês a mês a esgotar todos os euros e a endividar-me, para avançar, para chegar a um ponto em que “sim, OK, agora vais receber um investimento daqui, agora conseguiste este cliente”. Mas durante meses foi aquele slow burn. Foi o momento pior.

“Comunidade” numa língua muito estranha…

Quais são os vossos potenciais clientes, com quem é que vocês querem trabalhar?

Nós distinguimos entre utilizadores e clientes. O consumidor tem uma função muito importante: consome, paga, e é quem faz o pull do produto. Esta é a grande função dele, mas não é ele sequer que paga a comissão da venda, por exemplo. Quem paga a comissão da venda é o produtor e este é o segundo: o produtor é um dos principais clientes, sem dúvida alguma, sem produtores não há comida e sem comida não há clientes. O nosso modelo de negócio é diferente, está dividido assim. Podemos ter consumidor – produtor diretamente (e aqui há aquela comissão), mas depois temos o modelo de SaaS (software as a service), e aqui é por subscrição e temos dois tipos de interesse: um, municípios que queiram tornar-se mais sustentáveis, promover produtos locais, digitalizar os mercados que já têm, etc., e o outro são grandes corporações que queiram juntar os benefícios dos trabalhadores com as suas políticas de ESG (em português ambiente, social e governança), porque eles estão a promover alimentação saudável dos produtores.

É como fazer pop-ups nas empresas?

Exato, ter pop-ups lá. Ter um ponto de entrega ou de troca lá, o que permite que nós consigamos consumidores e também uma subscrição da parte deles. É a mesma coisa que, ao invés de mandar os trabalhadores num sábado fazer voluntariado, juntá-los todos no final do dia a uma terça ou quinta-feira, é mais interessante. Trazer a natureza de volta à cidade, basicamente.

E porquê Hortee?

Porque o nome “Fhlud” era muito mau (risos). Porque as pessoas liam F, H, L, O e D. E ainda leem (risos). E Hortee vem de horta, estás a ver? É catchy. Fizemos o teste, o único sítio onde isto não funciona é na Ásia. No este da Ásia, não funciona bem o nome Hortee, no resto do mundo praticamente funciona!

Então conseguem chegar ao mundo todo menos na Ásia (risos)!

Não, conseguimos. Só que lá aquilo não significa nada e há alguns sítios em que Hortee quer dizer “comunidade” numa língua muito estranha. É giro, porque é o que nós fazemos: comunidades! Nunca utilizamos isso, por acaso, no marketing, mas Hortee vem daí: horta.

Falaste várias vezes da equipa, e o momento mais feliz e o mais difícil estão relacionados com a equipa. Para o Ivanoel, qual é o maior desafio de ter uma startup, de ter uma empresa?

A responsabilidade. Eu acho que o principal desafio enquanto Founder, CEO e a pessoa que esteve desde o início e que foi juntando as peças até aqui, é, primeiro, manter a sanidade mental no meio destes vai-e-vens. Isso é o principal em qualquer Founder. Depois é manter a estabilidade da equipa! Manter a estabilidade no meio da instabilidade! A estabilidade pessoal, da equipa, do projeto. Não ser aquele cão que corre atrás de qualquer carro que passe, estás a ver? Ainda para mais num mercado mesmo chato de produtos frescos, extremamente perecíveis, com produtores locais com envelhecimento maior e não muito digitalizados, mas às vezes há surpresas muito interessantes! Os produtores são muito tecnológicos, apesar de nós acharmos que não. Se as nossas avós usam Whatsapp e Facebook e outras ferramentas, porque é que os produtores não usam? No meio destes desafios todos, manter a estabilidade, acho que é o principal desafio: ser estável, ser uma rocha a levar sempre com água.

“O meu ganha-pão são as minhas experiências”

Tu também tens outro projeto que é o Insimi. Como é que surgiu?

Surgiu exatamente na mesma altura que a Hortee. Foi numa chamada para um amigo em que eu digo assim “Olha, estou a pensar em fazer uma cena para ganhar alguns trocos.” Ele vira-se para mim e diz “Pá, é por isso que te estou a ligar!”, e eu “Então, como assim?” e ele vira-se “Pá, fui ao Japão, comprei uma t-shirt, gastei demasiado dinheiro nessa t-shirt, aquilo era em ienes e eu não reparei, e então depois, quando fui para comer, a seguir não tinha dinheiro (risos), mas a t-shirt foi a melhor t-shirt que eu já vi na minha vida, mas é feita em Portugal… Eu preciso que tu descubras” – ele estava na Suíça -, “preciso que tu descubras onde isso é feito”. A minha mãe é costureira desde sempre, então eu pensei “OK, bora. Vamos lá perceber onde isto é feito”. Atualmente, o projeto está nas versões finais, estamos a fechá-lo, porque nenhum de nós tem tempo suficiente, e porque, além da alimentação, a moda é horrível! É uma indústria horrível, extremamente poluente, uma indústria má, muito má! A moda é uma indústria de loucos!! Então, ter o desafio de fazer uma startup na área da alimentação e fazer outra na área da moda… não, não dá para ter as duas (risos)! Mas aquilo surgiu mais ou menos na mesma altura.

E como está a correr?

Fizemos uma campanha de crowdfunding, fizemos a primeira produção, estamos agora a acabar as últimas unidades dessa produção. Aprendemos imenso! Foi um projeto muito giro, foi uma cena de muita amizade, também muito fixe! Foi muito interessante, porque uma vez que eu gastava 5% do meu tempo ali e 95% do meu tempo na Hortee, aqueles 5% refrescavam-me as ideias com coisas diferentes, e havia coisas que eu aprendia ali que conseguia aplicar no outro. Havia muita coisa, obviamente, que eu aplicava ali, mas isso era a base. O meu ganha-pão são as minhas experiências.

E que tipo de t-shirts é que vendem?

Nós criámos t-shirts que são sustentáveis, inteligentes e éticas, ou seja, as três partes da moda que são tudo ao contrário. A moda é extremamente poluente, extremamente não ética (em Portugal também, embora as pessoas achem que não!), e nós adicionámos uns perlimpimpins para tornar mais sustentável e mais durável, para que não cheirem mal, não precisem de passar a ferro, terem uma maior durabilidade por serem feitas de material sustentável muito premium… Mas a moda sustentável é mais cara. A moda sustentável inteligente é bem mais cara, então… aprendemos imenso, basicamente!

Especialmente em Portugal...

Nós até vendemos mais na Suíça do que cá, mas tem que ver mesmo com moda e branding, e branding requer muito trabalho e tempo. E nenhum de nós consegue ter isso! Apesar de até sermos uma marca muito forte, está tudo muito bem conseguido até agora, simplesmente, o tempo para executar é mesmo muito exigente e nós não o temos, nenhum de nós. Em princípio, vai terminar, apesar de ainda ninguém ter metido uma pedra no caixão.

A vida intensa enquanto empreendedor não impede que Ivanoel Rodrigues tenha os seus momentos de tranquilidade e introspeção. Seja a caminhar, a ler ou ouvir música e podcasts, tudo é aproveitado para servir o seu propósito maior: questionar e questionar-se para melhorar enquanto pessoa inserida num planeta que enfrenta grandes desafios.

“Este ano descobri que sou chato”

Falamos muito de tempo e a vida não pode ser só trabalho. De que forma ocupas o teu tempo fora dele?

Gosto muito de dar caminhadas, e gosto de ouvir podcasts. Gosto particularmente do Daily Stoic, por exemplo, ouço todos os dias, por alguma razão tem este nome (risos). Quando estou a ouvir, sento-me e ouço. Ou sento-me e escrevo. Mas diria que gosto muito de caminhar, porque eu levo zero comigo. Levo um papel, um caderninho se for o caso, e caneta. Não levo telemóvel, não levo porra nenhuma! (risos) É para desligar. Não é o caminhar, é o desligar mesmo! Meteres-te offline, desligares. E acho que há qualquer coisa de espiritual relativamente às caminhadas. Todas as religiões têm caminhadas: vais a Fátima a caminhar, vais a Santiago de Compostela a caminhar, os budistas vão a Lassa a caminhar, os muçulmanos vão a Meca pelo menos uma vez na vida, a caminhar. Há qualquer coisa de espiritual em caminhar que te ajuda…

Essas caminhadas são com qual objetivo?

A parte de filosofar e de questionar-me sobre tudo e mais alguma coisa não é tanto business wise, mas tem mais que ver com algo de humano e que não tenha muita resposta, porque é a parte da filosofia, fazer perguntas.

E não pensares?

É sentir. Não pensar muito e sentir. Ouvir os pássaros, ver o mar, ouvir as cenas, sim!

O que é que te vai na cabeça, nesses momentos?

Se tiver preocupações, tento largá-las logo no início. Acho que é muito difícil dizer-te o que é que me vai na cabeça naqueles momentos porque é algo empower wondering, é empoderador. É mesmo para estar a divagar. Às vezes são ideias, às vezes são preocupações e resolves um problema enquanto estás a caminhar. Às vezes são emoções, estás feliz, triste, não sei, todas estas coisas! Acho que é isso, além de aliviar a cabeça, deixa-a fluir para onde ela quiser ir.

E partilhaste comigo que, este ano, andas numa de fazer perguntas.

Sim.

E que perguntas são essas?

Já fazia perguntas, mas este ano descobri que sou chato (risos) e, portanto, assumi que sou chato, ou seja, assumi que faço perguntas! Esta minha característica de chatear e ser curioso é chato para as outras pessoas. Muitas vezes faço perguntas e as outras pessoas reagem com “Epá, está calado, não preciso que faças essas perguntas!” Eu não tenho muito filtro em muitas coisas (risos). Sou uma pessoa muito direta, aliás, aviso logo. Qualquer pessoa que trabalhe comigo sabe o primeiro warning que eu digo “olha que eu sou muito direto”, que é uma característica do Norte da Europa que eu não sei porque a tenho, mas sou muito direto.

E tens algumas parecenças até físicas…

Tenho, mas eu sou só português. Não sei porquê, não tenho nada, nem o nome, nem a aparência física (risos). Sou português, pelo menos até ao meu tetravô! Mas como sou muito direto, gosto de fazer as perguntas, não necessariamente para incomodar, mas é porque as outras pessoas não perguntam, então não sei qual é a resposta, entendes? Não sei dizer, são perguntas de coisas que eu não consigo saber ao ler. Tenho de te perguntar. Vou dar um exemplo: conheci um casal há uns tempos que tinha mudado de vida drasticamente, porque os últimos 20 anos de vida deles arderam. Arderam mesmo! Num incêndio. A pergunta que eu lhes fiz foi: “Como é que é teres ficado sem os teus últimos 20 anos de vida… como é que tu reagiste a isso e como é que te fez evoluir, ou como é que passaste isso?” Este tipo de perguntas é para eu aprender, porque eu sei lá se daqui a 20 anos eu não tenho uma situação dessas e já vou ter um ponto de referência.

Então, provavelmente, nunca tinham parado para refletir…

Não, não tinham, eles ficaram parados a olhar para mim do género: “Uau! Essa pergunta é mesmo séria, meu! Mas…” e depois respondem. E depois, às vezes, eu e a malta – e numa startup estás a mil, sempre – , parar para perguntar é muito importante. De acordo com o Estoicismo, uma filosofia antiga, as principais perguntas são: “Isto é essencial? Isto está dentro do meu controlo ou não? O que eu faço é essencial?” São perguntas muito simples que devemos começar a fazer. Às vezes, parar para pensar o que estou a fazer é útil, ou se vai de acordo com o que eu quero, ou se estou capaz de fazer isto… fazer estas perguntas leva à clareza e a clareza leva a bons resultados! Perguntas-Clareza, Clareza-Resultados!

No teu LinkedIn, tens que o teu objetivo final é “deixar o mundo em melhor estado do que o encontrei.” O que tens feito para isso?

Tenho tentado não o deixar pior. Gostava de conseguir deixar algumas marcas que fossem para a posterioridade, isto é, se calhar de escrever um livro, e se fizer com que as pessoas evoluam um bocadinho, do tipo “saíam daí da caixinha, vão lá fora e percebam WOW, existe outro mundo!”, já deixei um bocadinho melhor aquela pessoa. E, obviamente, trabalhar em questões de sustentabilidade é algo que eu acho que vai deixar o mundo melhor. Começo o meu pitch com a mesma razão: nós vamos ter dez biliões de pessoas, aproximadamente, em 2050! E com os nossos solos, vamos ter de produzir mais comida nos próximos anos do que a que produzimos nos últimos 100! Se não fizermos nada em relação a isto, agora, em 2050 já não dá para fazer nenhuma coisa. Como tal, é tentar fazer um mundo um bocadinho melhor, seja a fazer boas ações, a tentar melhorar as pessoas, tentar ter um impacto no que estamos aqui a fazer!

Já que me falas em impacto, qual foi o momento ou um dos momentos mais impactantes na tua vida?

O momento mais marcante da minha vida não foi um momento, foi uma fase. Aos 18 anos, tive uma depressão bem grave, uma “coisa bem séria”, mas que me fez pensar um bocadinho na vida, mudou a forma como vejo a vida, basicamente. Existe o pré e o pós!

Há um Ivanoel antes e um Ivanoel depois.

Sem dúvida alguma, e tenho algumas pessoas que me conheceram antes e conhecem-me hoje e dizem que houve muitas coisas em mim que mudaram. Esse foi o momento mais marcante porque obrigou-me a evoluir e obrigou-me a mudar a minha forma de pensar em fazer as coisas para hoje estar aqui. Ainda ontem disse isto, eu estou vivo porque quero! Qualquer pessoa está viva porque quer, não é obrigatório as pessoas estarem vivas, e se não é obrigatório as pessoas estarem vivas, “you better do something about it!”. Foi uma fase que me fez mudar, evoluir, tinha uma casca, saí da casca, as lagostas, as cobras e esses invertebrados fazem isso. Largam a casca e vão para outra casca, e este foi o momento mais marcante e o que teve mais impacto, sem dúvida alguma, na minha vida! E depois o segundo foi quando o empreendedorismo começou e nunca mais o parei.

Nem vais parar!

É possível (risos).

Tens alguma pessoa que tenha marcado especialmente a tua vida?

Acho que não há uma pessoa, acho que há uma série de pessoas, por razões boas e razões más. A família teve coisas muito interessantes de positivo e negativo (eu acho interessante sempre tudo, não tem necessariamente de ser tudo negativo ou mau). Mas acho que foi uma série de pessoas, algumas porque morreram, algumas porque não morreram, algumas porque se juntaram, algumas porque se separaram, algumas porque disseram algo que era muito doloroso, algumas porque disseram algo que não era muito doloroso. Eu acho que tu não és feito de uma só matéria, és feito por um processo, e esse processo vem de várias pessoas.

Tens alguma coisa sem a qual não consigas viver?

Água (risos)! Eu passo mal se não beber água! Tenho de beber muito, muito regularmente. Coisas sem a qual não consigo viver… já pensei nisso e eu acho que é música! Passo o dia todo a ouvir música enquanto estou a trabalhar, sempre, o dia todo! Quando estou a trabalhar, meto os fones, se calhar começo em música clássica e acabo em hardbass… se calhar começo com techno e acabo num rock mais leve. Sou um eclético nisso, mas acho que é a música. Acho que não conseguia viver muito tempo sem música! E água (risos).

E quando eras criança, o que querias ser?

Militar (risos)! Queria ser militar, mas não posso ser militar porque sou hemofílico.

Mas era um caminho que ponderavas seguir mesmo?

Sim! Quando era pequenino, queria ser militar! Era isto o que eu queria! Não sei que ramo das Forças Armadas, só queria ser militar. Depois, quis ser padre, quis ser bombeiro… eu acho que quis uma vida de serviço. Depois, deixei de querer essas coisas.

Não estás longe… continuas a servir.

Continua a ser uma vida de serviço: sirvo os trabalhadores, sirvo os clientes, sirvo os partners. Queria ser militar, mas, depois, não me deixaram. Então tive de arranjar outra coisa.

E a vida seguiu o seu rumo!

Sim. Continuo a gostar muito de toda a teoria militar. Acho que eles têm uma comunicação muito eficaz, métodos eficazes e aprendem muita coisa. Mesmo para a parte industrial… aprende-se muita coisa da vida militar, e a disciplina, por exemplo, é uma coisa que eu acho essencial para qualquer pessoa no geral, e para empreendedores ainda mais. Vários tipos de disciplina vêm daí, da teoria militar!

E o teu maior defeito?

(suspiro) O meu maior defeito é avançar sozinho… Eu tomo iniciativa, sou um fire starter e muitas vezes começo e não pergunto! “Siga viagem!”. E isso às vezes é chato, porque eu sou filho único, cresci numa terra muito pequenina, numa zona muito pequenina, enquanto filho único! Então, sempre tive de me safar sozinho… questiono-me e “siga viagem!”, não partilho muito coisas próprias/pessoais com ninguém (nem com a minha namorada). Resolvo sozinho, avanço sozinho e isto é chato, porque não comunico para fora, e este é o meu maior defeito tanto a nível pessoal como empresarial! É algo que eu procuro sempre resolver e tomo atenção diariamente.

Talvez tenha feito falta uma partilha aqui ou ali, porque depois não ias sozinho e as pessoas apoiavam-te.

Completamente! Comunicar é essencial! Se tu não comunicas, não consegues receber feedback, seja positivo, seja negativo. Não consegues ter um backup, não consegues pedir ajuda, e pedir ajuda é importante. Quando não comunicas e tentas fazer sozinho… esse é o meu maior defeito e isso traz um monte de outros defeitos pelo meio. Não comunicando, não te ligas facilmente com as pessoas. Embora eu seja muito empático com as pessoas… eu no outro dia expliquei isto, o nível de emotional attachment para as pessoas começa, talvez, nos 50%. O meu começa para aí nos 80%, mas isso torna-me mais vulnerável, num momento em que estás attached, estás mesmo, porque já estás num nível bastante avançado! Mas, até chegar lá, consigo criar boas relações, excelentes relações! O meu emotional attachment… isso protege-me.

OK! Estamos a terminar! Tens alguma palavra preferida?

Tenho: desenvolvimento.

E tens alguma data que esteja gravada na memória?

Não.

Quais as três coisas que queres mesmo fazer na tua vida?

Que quero mesmo fazer na minha vida? Ser pai, gostava de ser professor e de ser autor. Sim! E de ser bom marido, também dá jeito (risos)!

OK. Podem ser quatro. (risos)
27 de julho de 2023
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